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quinta, 30 maio 2013 19:49

DESCOLONIZAÇÃO

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Do terraço ou da varanda da casa onde moro, em Lourenço Marques, pasmo, sofro e choro.Vejo o mundo apressado, cada um na sua, confuso a correr pela rua, pelas avenidas, de lado para lado, de banda para banda. Carros camionetas camiões carregados de mobílias roupas almofadas colchões mesas cadeiras famílias inteiras refugiadas dos subúrbios da cidade chegam de todas as partes temerosas da fúria exaltada da multidão negra excitada. Confrontam-se negros e brancos. Que pensamentos que angústias que sentimentos movem tanta gente conhecida que se desconhece? É racismo é ódio recalcado pelo tempo nunca ultrapassados por colonizadores e colonizados apesar de conviverem séculos nos bancos dos jardins nas ruas e esplanadas nas casas?

 Na confusão passam ambulâncias ouvem-se sirenes estridentes a caminho do hospital há feridos fruto da intolerância da caçadeira e da catana. Não se toleram as gentes a descolonização vai mal e o que se vê não engana. A cidade é o castelo medieval que oferece alguma segurança. É o prólogo da debandada, tempo de arrumar a trouxa e partir como alertaram atempadamente os  poetas de Abril que os governantes não viram, não escutaram, não leram,  ignoraram. Muita habitação  abandonada. O cais abarroto de contentores malas embrulhos num repente. Barcos e aviões cheios de gente que vai e não volta a vir: operários enfermeiros doutores funcionários domésticas lavradores crianças meninos velhos brancos novos civis militares polícias criadas criados senhores serventes mulatos negros assimilados cães pássaros e gatos receosos de perseguição e sevícias... tudo foge há semanas há dias ontem e hoje! É o retorno ao rectângulo à beira mar plantado, território donde partiu Gama, de muitos outros  acompanhado a caminho da Índia sem tormenta. É o século dezasseis ao invés, já ninguém por aqui se aguenta no império de lés a lés. Acabaram-se as ilusões. Tudo, tudo se vai embora e o Adamastor  mostra agora o seu  rosto verdadeiro. Vinga-se do pioneiro que um dia se atreveu a dobrar o cabo da Boa Esperança: o navegador Bartolomeu cantado por Camões. Vinga-se das gerações que aqui fizeram vida, aqui buscaram pão e guarida sem pensarem na contradança. Muito tempo é passado. Correram rios de História. E ao herói ao descobridor ao santo ao político ao mentor que, com artes e manhas, construíram um império, ufanos de batalhas e façanhas todas cobertas de glória, cantando e ocultando fortuna...sucede o vencido, o paupérrimo, o incauto,  o desiludido, o ingénuo, o despido retornado. São milhares! Lágrimas de dor e de raiva. Sonhos de vida. Vidas perdidas. Há quem não saiba! Saudade, saudade! Amigos desencontrados. Agora e para sempre. É o preço da opressão e da liberdade. Tanta gente, tanta gente, tanta gente sem perceber coisa nenhuma do futuro, do passado e do presente.

Abílio Pereira de Carvalho
(LM/75)

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.