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domingo, 18 dezembro 2016 11:13

DESCOLONIZAÇÃO VI

Escrito por 

BOLO (LIVRO) DE MIL FOLHAS

Quando cada um dos "retornados", civis ou militares, das ex-colónias se põem a folhear o livro das suas memórias encontram, seguramente, saborosas folhas de juventude, de alegria, de amizade,  de confiança, de camaradagem, de esperança num futuro ridente e de sorte, de mistura com folhas de sabor amargo, hesitação, solidão, morte, desengano, velhice e futuro incerto.

Já se viram mil imagens e já se escreveu muito (nunca tudo) sobre a GUERRA COLONIAL, DO ULTRAMAR, DA LIBERTAÇÃO e da consequente DESCOLONIZAÇÃO com a reintegração de 500 mil retornados no retângulo à BEIRA MAR PLANTADO. Está tudo em video, em livros, em revistas e jornais, dito, escrito e falado por jornalistas, escritores, políticos e militares intervenientes nas partes em confronto no terreno de guerra e nos bastidores. Ora na frente das batalhas, de armas na mão a atravessar picadas,  receosos de minas e das surpresas que pudessem surgir do meio do capim. Ora na retaguarda, no sossego dos gabinetes,  em redor de uma mesa a esquadrinhar mapas, a definir estratégias e tácticas,  de palito no canto da boca e uma garrafa de whisky por perto. 

1 - CópiaEssa GUERRA, qualquer que seja a designação que se lhe dê, tal como todas as guerras, extravasou os muros dos quartéis (ou quartéis sem muros) e envolveu também civis e gente pacífica. Políticos e não políticos. Não há guerras onde isso não aconteça. É só ver o que se passa atualmente no Médio Oriente (abro parêntese: em trabalho académico feito por mim há muitos anos, conclui que ali, naquela zona geo-estratégica delineada pelo triângulo das três religiões monoteístas,  judaica, cristã e maometana, sempre prontas a fazer faísca entre si,  era a zona propícia para INFERNO TERREAL, por oposição ao proclamado PARAÍSO TERREAL bíblico)  situação que, todos os dias, ajuda a esclarecer aqueles que diziam e apostavam que os negros nunca saberiam governar-se sem os brancos, que sem nós era o retorno à selvajaria, ao tribalismo primitivo, como se o PODER  tivesse algo a ver com a cor e os guerrilheiros independentistas não soubessem o que estavam a fazer.  A todos e cada um de nós é, pois, legítimo pôr os lábios no clarim e soprar (se souber distinguir e tiver fôlego) o toque de formatura, de apresentar armas, de destroçar ou de silêncio, mesmo que a falta de treino ou de estofo conduza a "fífias" clamorosas. 


Num dos meus últimos APONTAMENTOS, com o título "DESCOLONIZAÇÃO V" discorri sobre uma MESINHA DE CENTRO, estilo indo-português (senão mesmo indo-africano, acrescento agora) e o contexto político e humano em que a adquiri e me desfiz dela. O assunto agradou manifestamente de uns tantos amigos e foi do desagrado frontal de, pelo menos, um, por ele o entender deslocado nesta página. E, com educação, o fez saber. Nem podia ser de outra forma, pois, concordando ou discordando, é assim que se comportam as pessoas civilizadas.

RETORNADO que fui, vindo de avião com viagem paga por mim, ao sobrevoar Lisboa, ainda sem pôr os pés 3em terra, todos aqueles CONTENTORES alinhados e amontoados no Cais de Santa Apolónia a Belém me fizeram retornar ao Cais Gorjão, em Lourenço Marques, onde se alinhavam e amontoavam outros tantos. Lá e cá, dentro de uns e outros, estavam encaixotados, para uns, o produto próximo de uma, duas ou três  COMISSÕES DE SERVIÇO NO ULTRAMAR e, para outros, sonhos de uma vida inteira granjeados nas cidades, nas vilas e nas cantinas perdidas no mato, lá, onde o "cantineiro" e família eram os únicos brancos a servirem as populações e a serem servidos por elas, antes, durante e até depois do começo da GUERRA

Uns, chamados a cumprir o serviço militar, no desempenho do seu dever patriótico, faziam da terra onde eram colocados TERRA SUA, defendendo-a com abnegação e, tirante os que resolviam ficar lá depois de cumprido esse dever, todos os outros regressavam às terras de origem. Não falo propositadamente dos milhares de mortos, estropiados e de outros com marcantes sequelas físicas e mentais. No sofrimento da família, de pais, esposas e noivas. E defendo que os MEMORIAIS que se vão fazendo por este Portugal em fora, freguesia a freguesia, deviam incluir o nome de todos os CIDADÃOS que foram mobilizados para a GUERRA e não apenas aqueles que lá morreram, alguns deles falecidos num simples acidente de viação, sem qualquer ato heróico. Pronto. Mas há quem, imbuído pelo CULTO DA MORTE, entenda que só esses são dignos de tais MEMORIAIS. Para mim são os MEMORIAIS do CULTO À MORTE, quando preferia ver neles o CULTO À VIDA, designados simplesmente MEMORIAIS DOS COMBATENTES, vivos e mortos. Adiante. Outros, ignorando a HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO e não adivinhando a HISTÓRIA futura,  resolveram por "moto próprio" deixar as suas terras natais e ir FAZER VIDA nas TERRAS que lhes diziam SER NOSSAS  desde os bancos da ESCOLA PRIMÁRIA. Eu incluo-me neste último grupo. Mas, ao tomar tal iniciativa, se conhecesse a CONFERÊNCIA DE BANDUNG e seus objectivos, realizada em 1955, o meu rumo de vida e futuro seriam seguramente outros. Nunca tive propensão para ser herói, tipo RAMBO, com as suas admiráveis saídas de situações difíceis, deixando atrás de si a destruição.  Nem, tão pouco, ainda que isso almejasse, o invejável poder criativo de MACGYVER posto em semelhantes situações. Eram duas personagens do porvir. Ambas desconhecidas em 1960, ano do meu embarque para Moçambique.

Nessa altura a RÁDIO CLUBE DE LOURENÇO MARQUES terminava as suas emissões diárias, à meia noite em ponto, com o toque de silêncio, tornando assim Moçambique inteiro num quartel do Rovuma ao Maputo. Ao deitar-me, lá do outro lado do Equador, em Lourenço Marques, Beira, Tete ou Milange, o pensamento, que vence toda e qualquer distância num só instante, transportava-me ao R.I. 14 de Viseu, donde praticamente acabava de sair.  Lá longe, afastado da FAMÍLIA, eu estava cá, graças àquele simples toque de clarim. E premonitório foi esse toque. Quem o ouviu durante anos ao fim da EMISSÃO DA RÁDIO,  também ouviu o toque de  DESTROÇAR quando chegou o tempo disso. E destroçados foram os milhares de sonhos que vi encaixotados nos CONTENTORES, lá e cá, alguns deles a apodreceram ali. Uns, sem embarcarem e outros embarcados, tiveram no cais de chegada ao seu destino. Quem enganou quem? Todos eles, os que chegaram ao destino e os que ali apodreceram, são as folhas do livro, as folhas do bolo (o tal das mil) cujo recheio, saboroso ou amargo, é constituído por todos os que, respirando os ares do Índico e do Atlântico, de forma voluntária ou forçada, fazendo do TRABALHO HONESTO a sua arma de combate, viveram e sonharam  com um futuro digno, solidário e humano. Todos os que RETORNARAM ou FICARAM esperançosos num mundo sem guerras, de respeito pelo próximo, pelas LIBERDADES INDIVIDUAIS e pela LIBERDADE DOS POVOS. Todos estes podem e devem, colocar, sem reservas, a sua pitada de doçura ou de amargura, de conhecimento e de esclarecimento, sem arroubos de verdade única, no recheio desse bolo. Todos os que, no exercício da sua cidadania esclarecida,  não sobrepondo os episódios de caserna que fundamentam a sua OPINIÃO PESSOAL aos EPISÓDIOS DE INTERESSE HISTÓRICO, se prontificam a deixar aos vindouros o testemunho de um TEMPO e de um ESPAÇO vividos, sentidos, amados, cantados e chorados. Aqui, neste espaço ou noutro, nesta ou noutras páginas do FACEBOOK, pois não conheço espaço mais DEMOCRÁTICO nos tempos que correm:  aqui coexistem, à vista larga, as mais puras e leves futilidades da vida pessoal e de grupo, com assuntos de mais peso e reflexão de interesse colectivo. O FECEBOOK É UMA LIÇÃO e, sobretudo, um espaço de eficaz terapia para todos os que, como eu, silenciosamente e sem apoio pós-traumático, fomos protagonistas de uma REALIDADE HISTÓRICA que pode apagar-se das MENTES (se e´que se é apaga...), mas jamais se apagará dos livros de HISTÓRIA UNIVERSAL e demais suportes de INFORMAÇÃO e FORMAÇÃO.

NOTA: publicado um minuto antes na página PICADAS DE TETE para a qual foi escrito propositadamente.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.