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domingo, 22 março 2015 15:37

ESTÓRIAS DE CAÇA

Escrito por 


Há uma expressão muito frequente entre os devotos de Diana (num contexto pagão) ou devotos de Santo Huberto (num contexto cristão) que julgo não ofender nenhum dos membros que integram o "CLUBE DOS CAÇADORES, PESCADORES E OUTROS MENTIROSOS",  expressão essa que se deve ao facto de acontecerem na caça (e com a caça) peripécias tais que, sendo autênticas, vividas e sentidas por qualquer desses protagonistas, a sós ou acompanhado, parecem inverosímeis ao mais comum dos mortais citadinos que nunca pisaram um tojo ou uma carqueja, afeitos que estão ao macio das passadeiras das grandes superfícies comerciais.
Claro que uma "estória" dessas, contada numa roda de amigos caçadores, tem imediato acolhimento, pois a experiência de cada um deles dita-lhes a veracidade dela. A coisa está, pois, em bem ou mal contá-la. 
1 - A LEBRE TONTA

Os montes da Beira são rasgados por trilhos, carreiros e caminhos que ligam povoações e terrenos agrícolas. Alguns desses caminhos, com a largura suficiente para a passagem de um carro de vacas, são emparedados por terras altas que, para serem túneis, só lhes falta a cobertura.

Pois uma bela manhã regressava um lavrador de uma leira onde fora levar uma carrada de estrume e, para poupar as pernas, subiu para o carro e encostou-se à parte da frente da sebe. Para quem não sabe eu explico que a sebe serrana, geralmente feita de vime ou de carvalhiço fatiado, têm a forma da porta de uma igreja de arco redondo, arco românico, só que na horizontal, presa às chedas do carro por um palmo de estadulho que penetra nos furos abertos para isso.

Pois como dizia, regressava ele naquele lugar e naquela posição, a atravessar um desses caminhos fundos, quando viu o seu cão a perseguir uma lebre em direcção às traseiras do carro. A lebre, tendo pela frente o carro de vacas e por trás o cão, sem escapatória lateral, deu um salto para cima do carro e foi-se meter num tamanco que o lavrador tinha tirado do pé que o andava a incomodar com um calo no mendinho. O cão nem deu pelo voo da presa e o lavrador só teve o trabalho de lhe pôr as gadunhas e tirar-lhe o chiadouro com uma cacetada atrás das orelhas. 

Quando contou o sucedido, ninguém acreditou. Mas ele tinha uma coisa que atestava a veracidade do facto: era tido por pessoa idônea e não era caçador.

2 - ESTENDIDOS NO CHÃO, UM VIVO E OUTRO MORTO

Aconteceu num lameiro junto a uma linha de água que corria para o Rio Mau no inverno, mas que no verão não passava de uma simples vala seca. Lameiro propício a "covas de coelho" conhecidas por todos aqueles que faziam do furão um prestimoso auxiliar na "caça furtiva". O rio Mau é afluente do rio Paiva e serve de linha divisória entre os concelhos de Vila Nova de Paiva e de Castro Daire.

Um fim de tarde, feno segado, lameiro limpo, as primeiras sombras das giestas a entrarem, ao ritmo do Sol, sorrateiras e mansas no bico norte do lameiro, junto à levada que, em tempo de água, regava o terreno, nessa tarde abafada, dizia eu, longe do povoado, ali estavam dois manatas, entre os seus 16 e 17 anos de idade, prontos a interromperem os sonhos dos láparos que, nas lorcas subterrâneas, costumavam dormir a sesta. Nesse dia, algo de inesperado lhes foi interromper a rotina, não deixando que eles acordassem naturalmente para, de seguida, virem espreguiçar-se à superfície, fazer umas correrias, senão lutar pelos domínios em torneiros que deixavam marcas nas orelhas,  e, por fim, dar gosto ao dente, mordiscando as primeiras fêveras verdes que, atrevidamente, aqui e além, destoavam daquele espaço ressequido e morto, quais anarquistas sociais a levantarem a cor e o grito da sua existência e inconformismo, a mostrarem ao homem que até no livro da natureza se podem ler os sinais da mudança, mesmo nas estações adversas.

O meu irmão Zé, mais velho do que eu um ano, de arma aperrada, colocou-se em local estratégico. Eu, de cacifo a tiracolo, corri a raquete que lhe servia de portinhola e,...zás, meti o furão num dos buracos. 

Foi só esperar. E a espera não foi longa. Daí a nada, eis uma vítima a saltar espavorida do interior dos lençóis. Mas, fino e lesto, em dois pulos de ginasta, sem dar tempo a tiro, meteu-se na vala, escapulindo-se à pontaria. Face à sua esperteza, corri para lhe interceptar o caminho e fazê-lo correr em campo aberto. Ele não me deu tempo. Com a rapidez com que entrou na vala, dela saiu, subindo para o lameiro, mas em ponto tal que eu fiquei entre ele e o atirador. Face ao imprevisto e constatando eu estar na linha de tiro, não hesitei um instante. Aproveitando a inclinação do lameiro a descair para o lado do meu irmão, lancei-me rápido ao chão e, estendido ao comprido de barriga para baixo, gritei-lhe: "atira-lhe, Zé". E ele atirou-lhe. E matou o coelho. O tiro passou rés-vés por cima das minhas costas. Podia ter-me matado ali mesmo. 

Mas isso é o que unanimemente pensamos os dois, agora, muitos anos passados, ambos com experiência acumulada de caçadores, quer em Portugal, quer em África. E sempre que o caso  vem à conversa reprovamos essa nossa aventura de juventude. A minha, porque me lancei para o chão incitando-o a dar fogo. A dele que, de mira no coelho, premiu o gatilho e, em menos de nada, o obrigou deitar-se a poucos metros de mim: eu imóvel como um bacalhau no secadouro e o coelho a espernear com estertores da morte.

3 - LEBRE MORTA-LIÇÃO VIVA

Na tribo dos caçadores nem todos os membros se comportam com aquela solidariedade, aquela ética e aquela verdade que, em qualquer circunstância, dá a cada um de nós o subido sentido de pertença e a honra de sermos queridos e desejados para companheiros de caçada. Alguns conheci eu nos trilhos da vida, mas destaco um que ninguém o queria ver alinhado ao seu lado, pois sabido era que peça a que ele atirasse primeiro, mesmo que lhe não batesse com um grão de chumbo (ele não acertava numa porta) e essa peça viesse a ser abatida, de seguida, pelo companheiro do lado, logo ele gritava aos quatro ventos:

- É minha, é minha! Fui eu lhe lhe dei!

Por isso, quando em terras de Castro Verde, botas no restolho, armas em posição, cães a cumprimentarem-se uns aos outros a meterem o nariz onde são chamados, vá lá saber-se porquê,  nos preparativos para formarmos  a linha e começarmos a batida (no meu tempo só podíamos caçar cinco em grupo)  todos procurávamos não ter esse fabiano ao nosso lado. Mas, não obstante esse esforço, ele integrava a equipa, era cunhado de um elemento do grupo, e lá tínhamos nós de aguentar a sua companhia, apesar de sabermos que o filme de sempre se repetiria, à maneira de certos canais de televisão que usam e abusarem dos subscritores. Quando ligo o aparelho e constato que está a correr hoje, o que vi ontem, anteontem, a semana inteira, lembro-me sempre desse protagonista. Por antecipação, muitos antes de haver os CANAIS CABO, já ele tinha encasquetada na cachimónia a mesma ideia: fazer a caçada sem grandes despesas e esforços.

É claro que o mais sacrificado era sempre o mais novato do grupo. Os mais experimentados esgueiravam-se habilmente dele, alinhavam por forma a não haver de permeio lugar para outro e, sem dar por isso, lá estava ele ao pé do maçarico que ainda não lhe conhecia as manhas.
Mas na caça aprende-se depressa. E foi um novato desses, o meu colega João Grilo, do Redondo, professor de Matemática (nunca mais o vi desde que deixei o Alentejo) que lhe deu a lição merecida. 
E o caso foi que, a dada altura da caçada, saltou uma lebre ao pés do companheiro "indesejável". Lampeiro como era, desfechou-lhe três tiros, porque mais não tinha, e a lebre lá se foi à vida, escapulindo-se na primeira lomba da herdade. Mais ninguém lhe atirou. Ela seguiu em frente e não passou ao alcance de nenhum de nós. 

Prosseguimos a caçada e ao dobrar uma lomba do terreno, o João, por coincidência fatal, encontrou uma lebre morta, coberta de varejas, um fedor que tresandava, sinais evidentes de ter sido morta uns largos dias antes. Ora ali estava, pensou ele, o objecto que ele queria para nunca mais se ver junto do caçarreta. Pegou-lhe pelas patas traseiras, levantou-a ao comprido e gritou-lhe: 

- Eh! olhe o que achei! mostrando-lha.

-  É minha, é minha, eu vi logo que tinha feito dela um crivo!  e veio em direcção do João com a lengalenga do costume. 

A lebre estava com a pele feita num crivo, lá isso estava,   mas era das varejas e larvas que, mesmo sem feijão branco, fizeram dela um banquete a semana inteira.  O caçarreta aproximou-se ávido de lhe pôr a mão e cintá-la, mas só deu pelo logro quando lhe pegou e viu o estado em que estava. Foi zanga séria, mas o meu colega, com esta sua iniciativa e sentido de humor, viu-se livre dele para sempre. Nunca mais caçaram ao lado um do outro. Confirmou-se o ditado: "para grandes males, grandes remédios" e na caça acontecem coisas do arco da velha, coisas que só os caçadores apreciam e entendem, porque só  por eles são vividas.

4 - PERDIZ QUE VAI E VOLTA

Ao contrário daquele companheiro de caçada que era lesto a cintar a peça deitada abaixo pelo colega do lado, só pelo facto de lhe ter dado fogo primeiro, mesmo sabendo que tinha falhado o alvo, também conheci outros com comportamentos diametralmente opostos. Como caçadores incapazes de cintar peça alheia, não carregavam nos seus ombros somente a espingarda e apetrechos,  carregavam também o caracter, a personalidade e a honra, as marcas de se ser HOMEM!

E explico. Certa vez eu e outro parceiro (só nós os dois) batíamos um terreno em zona de perdizes: mato rasteiro, carqueja e sargaços ratados pelos gados, sítio amplo e aberto, propício ao descanso e gosto deste gado alado se esponjar-se à tarde, antes de descer às leiras próximas e retornar ali de papo cheio, prontinho a passar uma noite descansada. Como impunha a experiência e o bom senso, caminhávamos lateralmente a distância segura um do outro. Era no meio de uma encosta com razoável inclinação e um riacho ao fundo. Um quarto de hora andado, saltou-me uma perdiz à distância de tiro e eu, arma à cara...tau. Bastou um tiro, pois ela veio redonda a terra. Como de costume, seguro da minha pontaria de canhoto, caminhando na sua direcção, abri a espingarda para recarregá-la e... surpresa, sem me dar tempo para isso e de a fechar novamente, a perdiz levantou voo e seguiu na direcção do meu parceiro, passando-lhe à frente, bastante larga. Ele, um excelente atirador, tinha uma máxima pela qual se guiava: "o chumbo dentro da espingarda não mata", por isso, mesmo à distância de tiro muito esticado, arriscou e ...tau...tau...Nada. A perdiz prosseguiu viagem de asa aberta, voo planado, encosta abaixo em direcção ao ribeiro. 

Visto isso eu prossegui a rota e, à minha esquerda, o meu parceiro pareceu-me fazer o mesmo. Viemos a encontrar-nos na confluência das duas linhas de água que desaguavam no dito ribeiro e que delimitavam o monte. Não houve mais tiros, nem perdizes. O meu espanto foi quando ele se aproximou de mim com uma perdiz à cinta e, muito calmamente, descintou-a, estendeu o braço e disse-me:

- Toma lá, esta perdiz é a tua.

- Como assim?

- É a mesma que tu deitaste abaixo. De seguida, dei-lhe dois tiros muito largos, mas não lhe acertei com uma bago. E como vi que ela ia ferida por ti, acompanhei-lhe o voo, seguro de que ela iria cair a qualquer momento. E caiu. Mas sabes como? Sempre da asa aberta em voo planado quase chegou ao ribeiro, mas, chegada aí, resolveu retroceder, bater as asas para vencer a subida e, sem força e sem vida, veio cair-me quase aos pés. Só tive o trabalho de ir buscá-la. Aqui a tens.

NOTA: Este caso insólito aconteceu, tal qual vos conto. Só falta dizer que foi no lugar da Ouvida, um monte que fica entre as aldeias das Monteiras e Mouramorta, concelho de Castro Daire. Actualmente está rasgado pela A24 que liga Viseu, Castro Daire Lamego, Vila Real. Se um dia qualquer os meus amigos passarem por ali, sentados nos vossos BMW, com portagem paga,  lembrem-se que a dignidade e honradez da PARCERIA feita por estes dois caçadores nada tem a ver com a dignidade e honradez de quem fez as PARCERIAS que deram lugar a estas vias de comunicação, um tipo de CAÇADORES que caçam fortunas sem romperem as botas nos montes.  São os "salteadores" das encruzilhadas dos nossos tempos, com a garantia dos assaltados não poderem dar troco à ameaça: "ou a bolsa ou a vida". E os assaltos rendem MILHÕES.

Falta dizer que o meu parceiro de caçada era um irmão meu, mais velho do que eu um ano, aquele com quem formei equipa desde jovens, à revelia do nosso pai. Bastava que o soubéssemos em negócios fora da aldeia e aí estávamos nós, ele de espingarda em punho e eu de furão a tiracolo, prontos a treinar-nos nas ARTES VENATÓRIAS.

5 - PESO A MAIS, LUZ A MENOS

Numa roda de caçadores e pescadores trocavam-se impressões sobre o produto do dia. O caso passou-se em África onde, caçador que se preze, só faz pontaria a elefantes, leões, búfalos, crocodilhos e antílopes. Gado alado, só as galinhas da Índia pintadinhas, de cujo peito se fazem uns bifinhos que só em lembrá-los fazem salivar todo aquele que algum dia lhes ferrou o dente.

Pois como dizia, nesse bate-papo, sempre molhado com uma pingoleta de estalo, um caçador de búfalos dizia ter abatido um que calculava pesar, seguramente, duas toneladas. Um troféu raro!

"Ora impinge essa a outro" retorquiu-lhe um pescador que se deu satisfeito com a pescaria feita. "É verdade, bem, eu não o pesei, mas pelo tamanho e cornadura, vá lá, tonelada e meia". Nem assim convenceu o pescador e os outros em redondo. E vendo ele a sua incredulidade nos olhares e esgares, condescendeu. "Pronto, uma tonelada e não se fala mais nisso". Mas o pescador resolveu entrar no jogo,  piscou os olhos aos demais disfarçadamente e disse: "a mim hoje, ali na marginal, aconteceu-me uma coisa impensável. Senti a cana tremer, a linha a esticar e comecei a dar à manivela Trrtrrtrrtrr ..... Trrrtrrrtrrr. Quando a linha estava quase toda metida no carreto eis que à tona da água, preso no anzol, me apareceu um candeeiro aceso, um lampião igualzinho aquele que os meus avós, lá na Beira Alta, usavam de noite para ir ao moinho ou regar os milhos".

"Essa não. Essa é peta. Qual candeeiro aceso, qual c...." atirou-lhe de chofre o matador do búfalo. "Peta porquê?" interpelou o pescador. "Porque isso é um absurdo, um candeeiro aceso a sair da água, essa não". "Pois está bem", anuiu o pescador acrescentando: "tu tiras uns quilitos ao búfalo e eu apago o candeeiro".

E ambos se ficaram pelo acordo que designaram PESO A MAIS, LUZ A MENOS. E eu, ciente de que  as "estórias" e/ou "anedotas" atribuídas a caçadores e pescadores sempre fizeram parte do mercado global, antes mesmo da globalização que actualmente vivemos, eu,  que não assisti ao diálogo, aqui vendo o TÍTULO e o CONTEÚDO pelo preço que os comprei. E não se fala mais nisso.




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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.