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sábado, 31 maio 2014 17:33

OS PIÕES

Escrito por 
O amigo Carlos Lourenço, no Facebook, reagindo à fotografia recentemente postada a que dei o título «A FAMÍLIA», marcou a sua presença escrevendo: «Bons tempos professor, tempos esses em k ia aí para sua casa brincar com o Nuro e o Valter. Boas lembranças» e eu, sem menosprezo para os restantes que me deixaram palavras amistosas, sobretudo, referindo-se à minha esposa (falecida), respondi-lhe: «Tenho andado a mexer nos arquivos, desde fotos, a louça, pratos e garfos. O último achado foi um certo número de PIÕES bem usados e, se calhar, alguns deles entraram nas vossas brincadeiras, ó Carlos Lourenço. As pessoas dispersam-se, mas os afectos e memórias as unem. Um destes dias vou fotografá-los e postar aqui o estado em que ficaram. Baraços e e tudo».
Ora cá estão eles. E vê-se bem que os meus filhos e os amigos deles lhe deram bastante uso.

Depois de este texto publicado no mural do Facebook lembrei-me de ir ao meu livro «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», editado em 1993 e transcrever para esta página o que nesse ano escrevi sobre o «JOGO DO PIÃO». É o texto que se segue:

Piões-1«Sem que ninguém saiba explicar bem, como e porquê, é pela Quaresma que, por estas bandas serranas, o jogo do pião vem sempre a terreiro.
Se nos situarmos na década de quarenta, para sermos mais precisos e fiéis à fita do tempo, diremos que, então, eles eram na maior parte das nossas aldeias, feitos à enxó e formão, acabados a canivete, arrancados a uma pernada de amieiro ou pinheiro por ser a madeira mais fácil de fasquiar.
Não eram, a bem dizer, obras-primas que se exibissem em exposição: esguios, rugosos, às vezes com um resto de casca a arredondá-los, num ou noutro lado (qual remendo na vestimenta) quase sempre rachados na ponta em resultado do ferrão lhes ter sido metido à martelada, jamais pensavam em dar e receber tantas «nicadas» dentro do pequeno círculo traçado nos terreiros em frente da escola, ou em qualquer outro lugar dos montes, onde a vida de pequenos estudantes-pastores os levasse naquela época do ano.
O mais sacrificado na folia e rodopio era sempre o que tinha um dono principiante e inexperiente. No lanço rasgado do braço e no puxar rápido da «baraça» estava toda a habilidade. Não fosse isso feito e o infeliz lá ficava dentro do círculo, para só sair cheio de rasgões, maltratado ou morto. Se era dos que se faziam na aldeia, o facto não causava grande alarido entre a pequenada, nem grande desgosto ao dono. Os amieiros à beira-rio e os pinheiros das encostas logo forneciam um galho para o substituir. Mas se era um daqueles polidos, barrigudo, feitos ao torno, de ferrão amarelo, dourado, dos raros que à serra subiam, comprado na vila em dia de feira, não havia dúvida de que cada «nicada», cada rasgão na vestimenta punham a nu a alma dos intervenientes no jogo:  a vingança e o despeito de não poderem possuir um igual traduzia-se de imediato em saltos e gargalhadas. Parado no círculo, «nicada» após de «nicada», o vilão logo se arrependia de ter subido à serra. Sabido isso pelos que o antecederam era quase certo que, novinho em folha, saído da civilização, não entrava logo nas competições. Só depois de uma fase de aculturação, rodado a medo pelos caminhos e carreiros recatados, só quando a sua camisa listrada perdesse o brilho e polimento, só quando o carinho do seu pequeno dono se esvanecesse é que, pode dizer-se, podia entrar na roda e viver finalmente a sua Quaresma.

Jogo de rapazes, no qual se confunde a agressividade a a destreza, eis uma roda de jogadores atirando o pião para dentro de um círculo de modo a evitar que ele fique lá dentro. Atirado na perpendicular, a sua barriga logo raspa no chão e é vê-lo apressado a «dar o fora».
Jogada mal sucedida, pião parado na roda, logo os outros jogadores libertam os seus ensejos: braço todo estendido a fazer pontaria, pião bem embaraçado na mão lançam as suas feras ávidas de sangue contra a vítima. Os gestos e os movimentos, os esgares e os sorrisos, as gargalhada e os saltos misturam-se com o "fungar" dos piões que, rodando sobre si próprios, vencendo a resistência do ar, anunciam a nicada poderosa para logo darem «às de vila Diogo» e não sofrerem os mesmos tratos.
«Mas se é no jogo em roda que, simultaneamente, se patenteia agressividade e habilidade, já o mesmo não acontece fora dela. Aqui é ver quem melhor apanha o pião em movimento para a mão a partir do chão, ou mesmo no ar sem ir ao solo. É apanhá-lo do chão para o polegar, abrir os dedos, mão bem alta, braço estendido e não o deixar cair. É passá-lo da palma da mão para a unha e fazer o inverso com segurança. Utilizar com perfeição, equilíbrio e leveza as diferentes superfícies disponíveis  - chão, palma da mão e unha - eis em que consiste a competição e a maestria de todos os que se cansam da roda e da nicada.

O mundo em movimento, não tão rápido como o pião, altera os costumes, os valores e os jogos. No essencial o jogo do pião é hoje igual ao que era ontem. Mas agora são poucos os piões que se fazem por processos artesanais. E os grandes campos de batalha não são mais e só os mesmos. As «baraças» de estopa deram lugar às de nylon e as crianças da serra descem à vila, onde, na Escola Preparatória, exibem o pião e os livros que os ajudam a ver o mundo para lá da serra do Montemuro»


 (in «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», 1993)

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.