Depois de este texto publicado no mural do Facebook lembrei-me de ir ao meu livro «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», editado em 1993 e transcrever para esta página o que nesse ano escrevi sobre o «JOGO DO PIÃO». É o texto que se segue:
«Sem que ninguém saiba explicar bem, como e porquê, é pela Quaresma que, por estas bandas serranas, o jogo do pião vem sempre a terreiro.
Se nos situarmos na década de quarenta, para sermos mais precisos e fiéis à fita do tempo, diremos que, então, eles eram na maior parte das nossas aldeias, feitos à enxó e formão, acabados a canivete, arrancados a uma pernada de amieiro ou pinheiro por ser a madeira mais fácil de fasquiar.
Não eram, a bem dizer, obras-primas que se exibissem em exposição: esguios, rugosos, às vezes com um resto de casca a arredondá-los, num ou noutro lado (qual remendo na vestimenta) quase sempre rachados na ponta em resultado do ferrão lhes ter sido metido à martelada, jamais pensavam em dar e receber tantas «nicadas» dentro do pequeno círculo traçado nos terreiros em frente da escola, ou em qualquer outro lugar dos montes, onde a vida de pequenos estudantes-pastores os levasse naquela época do ano.
O mais sacrificado na folia e rodopio era sempre o que tinha um dono principiante e inexperiente. No lanço rasgado do braço e no puxar rápido da «baraça» estava toda a habilidade. Não fosse isso feito e o infeliz lá ficava dentro do círculo, para só sair cheio de rasgões, maltratado ou morto. Se era dos que se faziam na aldeia, o facto não causava grande alarido entre a pequenada, nem grande desgosto ao dono. Os amieiros à beira-rio e os pinheiros das encostas logo forneciam um galho para o substituir. Mas se era um daqueles polidos, barrigudo, feitos ao torno, de ferrão amarelo, dourado, dos raros que à serra subiam, comprado na vila em dia de feira, não havia dúvida de que cada «nicada», cada rasgão na vestimenta punham a nu a alma dos intervenientes no jogo: a vingança e o despeito de não poderem possuir um igual traduzia-se de imediato em saltos e gargalhadas. Parado no círculo, «nicada» após de «nicada», o vilão logo se arrependia de ter subido à serra. Sabido isso pelos que o antecederam era quase certo que, novinho em folha, saído da civilização, não entrava logo nas competições. Só depois de uma fase de aculturação, rodado a medo pelos caminhos e carreiros recatados, só quando a sua camisa listrada perdesse o brilho e polimento, só quando o carinho do seu pequeno dono se esvanecesse é que, pode dizer-se, podia entrar na roda e viver finalmente a sua Quaresma.
Jogo de rapazes, no qual se confunde a agressividade a a destreza, eis uma roda de jogadores atirando o pião para dentro de um círculo de modo a evitar que ele fique lá dentro. Atirado na perpendicular, a sua barriga logo raspa no chão e é vê-lo apressado a «dar o fora».
Jogada mal sucedida, pião parado na roda, logo os outros jogadores libertam os seus ensejos: braço todo estendido a fazer pontaria, pião bem embaraçado na mão lançam as suas feras ávidas de sangue contra a vítima. Os gestos e os movimentos, os esgares e os sorrisos, as gargalhada e os saltos misturam-se com o "fungar" dos piões que, rodando sobre si próprios, vencendo a resistência do ar, anunciam a nicada poderosa para logo darem «às de vila Diogo» e não sofrerem os mesmos tratos.
«Mas se é no jogo em roda que, simultaneamente, se patenteia agressividade e habilidade, já o mesmo não acontece fora dela. Aqui é ver quem melhor apanha o pião em movimento para a mão a partir do chão, ou mesmo no ar sem ir ao solo. É apanhá-lo do chão para o polegar, abrir os dedos, mão bem alta, braço estendido e não o deixar cair. É passá-lo da palma da mão para a unha e fazer o inverso com segurança. Utilizar com perfeição, equilíbrio e leveza as diferentes superfícies disponíveis - chão, palma da mão e unha - eis em que consiste a competição e a maestria de todos os que se cansam da roda e da nicada.
O mundo em movimento, não tão rápido como o pião, altera os costumes, os valores e os jogos. No essencial o jogo do pião é hoje igual ao que era ontem. Mas agora são poucos os piões que se fazem por processos artesanais. E os grandes campos de batalha não são mais e só os mesmos. As «baraças» de estopa deram lugar às de nylon e as crianças da serra descem à vila, onde, na Escola Preparatória, exibem o pião e os livros que os ajudam a ver o mundo para lá da serra do Montemuro»
(in «Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva», 1993)