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quinta, 17 janeiro 2019 12:56

CUJÓ - CADEIRA PAROQUIAL - 1954

Escrito por 

HISTÓRIA EDIFICANTE

Feita em 1954, digamos que a um “ai” dos anos da “independência da freguesia” verificada em 1949/1951 (civil e religiosa), o tio Domingos Pereira Vaz caprichou na sua feitura. E ela aí está para honra sua e orgulho nosso. Desconheço a madeira utilizada, mas que as suas mãos, manejando as ferramentas de carpinteiro/marceneiro, serrotes, plainas, formões, goivas e martelos, compassos e esquadros, projetaram, em talha, as suas geniais ideias, crenças, pensamentos e afetos, é verdade.

 

Datada - 1tio Domingos  (como era conhecido e tratado) era um homem da geração do meu pai. Meão de corpo, o seu esqueleto não carregava grande peso de carnes. Aliás como nenhum serrano da época. Nesse tempo ninguém sofria de obesidade. Só isso seria assunto para profundo estudo. Mas, de momento, fico-me com o encanto de tê-lo conhecido e com ele falado. Atento a tudo o que lhe caía sob os olhos diferente das coisas banais e corriqueiras, por exemplo uma “pedra de raio”, logo a metia no bolso para mostrar aos mais novos e dizer: «isto é uma mimória».

Não é erro meu. Era assim mesmo que ele dizia. E ele bem podia trair a fonética gramatical, pois isso não o privava de saber fazer sabão e pólvora. Da sua boca ouvi eu dizer muitas vezes: «os tiros da minha pólvora entoam assim “teu”, sem fumo, diferente das outras pólvoras que fazem “pum” e uma fumarada que tolhe a vista ao caçador».

Dele se dizia possuir o Livro de S. Cipriano, o único existente na aldeia e daí lhe ser atribuído um saber e um conhecimento tolhido aos demais habitantes da aldeia.

Estudioso e homem de “mimórias” boa MEMÓRIA manuscrita me deixou ele, herdada dos seus avoengos. Foi a “ESCRITURA DE EMPRAZAMENTO” feita em 1817, entre JOSÉ PEREIRA VAZ e o Convento das Chagas de Lamego. Documento que chegou até mim através de Zeferino Gonçalves, irmão de Deolinda Gonçalves que casou com o José Domingos, seu filho. Desse documento me servi no livro “Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva”, no que respeita a terras “emprazadas” e foros correspondentes.

Escritura-REDZRemeto os interessados para a leitura desse meu livro feito “pro bono” (nada recebi por fazê-lo e nada recebo da venda) editado pela Junta de Freguesia, em 1993, sendo Presidente Secundino de Carvalho. Para esse livro remeto os interessados, ainda que me pareça oportuno deixar aqui um retalho desse manuscrito que perdurou no tempo graças ao zelo dos “enfiteutas” identificados e dos seus descendentes, o tio Domingos, o seu filho Zé Domingos e do cunhado Zeferino Gonçalves, ambos meus amigos, vivos, que liam, obrigatoriamente, diziam eles, tudo o que eu escrevia sobre a nossa terra. Eis retalho e a sua transcrição:

«Escritura de prazo e novo emprazamento que fazem as Freiras das Chagas, desta cidade, a José Pereira Vaz e sua mulher Maria da Silva, moradores em Cujó, Freguesia de São Joaninho = Saibam quantos este público instrumento de Escritura de Prazo e novo emprazamento, ou como em Direito melhor lugar haja força, virem, que sendo o ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de mil oito centos e dezassete anos, aos trinta dias do mês de Agosto do dito ano, nesta cidade de Lamego e morada do Reverendo Francisco José Ferreira da Santa Bárbara e Moreira, cónego Prebendado na Santa Sé, desta cidade e Administrador do Convento das Religiosas Das Chagas (…)» etc.etc.

cadeira - CópiaPois foi este homem, o tio Domingos Pereira Vaz, descendente do “enfiteuta”  foreiro, José Pereira Vaz e esposa Maria da Silva, o artista que desenhou e executou a CADEIRA PAROQUIAL.

 Em 2009 fiz um filme sobre a Igreja Matriz e para esse móvel dirigi a objetiva da minha câmara. A imagem que aqui se anexa é um fotograma retirado desse vídeo. Era este o seu estado nesse ano. Recentemente foi restaurada e ei-la, agora, tal qual ficou neste ano de 2019. Bem digna de ser vista e apreciada, para honra do autor e orgulho nosso.

E como toda a “cadeira presidencial” (paroquial) se deve distinguir das demais, incluindo aquelas que a ladeiam (cadeiras ou bancos) destinadas aos acólitos, com marcas evidentes de ser um móvel único e diferente, o tio Domingos  (como era conhecido) que viveu a euforia da independência da freguesia, que conhecia o sonho antigo do povo de Cujó se libertar do povo de S. Joaninho, sonhou, pensou, congeminou, acordou e pôs mão à obra.

Cadeira de assento com braços de extremos dianteiros recurvados em caracol, pernas arcadas ao estilo “Queen Anne” seria, porém, no espaldar que o artista gravaria o seu génio, o seu trabalho, a sua imaginação e sua criatividade.

Seria nessa área de trabalho que, debaixo acima, manipulando a goiva e o formão, escreveria os símbolos bíblicos e cristãos que transmitissem aos vindouros a realização material de um sonho, que foi a independência da freguesia, com a marca e desejo de paz na terra entre os homens de boa vontade. Para os vizinhos e para o mundo inteiro.

E, pensados os elementos a lavrar nesse campo aberto à sementeira de IDEIAS E ARTES havia que se proceder à sua distribuição equilibrada, cada um deles com o destaque apropriado.

Pensado e repensado um “V” de lados arqueados, nasceria aberto a partir da base do assento e nele gravadas as iniciais do seu nome DPV. O “P” gravado no vértice do “V” e as restantes letras, uma de cada banda (ver foto).

Datada - CópiaLogo a seguir, dentro de uma nervura saliente, um espaço livre em forma de coração invertido. Nele ficou a gravação do ano 1954.

Por cima e de través, a toda a largura da cadeira, uma espécie de estola dobrada em arco invertido, com as duas bandas a cair nos extremos, a servir de lintel à destacada legenda “PAX VOBIS”.

Logo a seguir, bem centrada, entre nervuras repuxadas, uma oval ao alto, ladeada, de baixo a cima, por ramos de oliveira. Dentro dela foram lavrados elementos claramente ligados ao FIM DO DILÚVIO bíblico. O mastro da arca de Noé aparece a emergir das águas e pousada nele uma ave na qual o artista parece ter fundido, intencionalmente, um corvo e uma pombaDOIS EM UM, pois foram esses os dois mensageiros utilizados por Noé para ter sinais de terra. A figura tem corpo de corvo, mas assume a missão da pomba, com um ramo de oliveira no bico. E não é de crer que o artista, tão meticuloso nos pormenores, não soubesse desenhar uma pomba. Cá por mim, tal ave foi iassim esculpida intencionalmente: dois em um.

É isso. O tio Domingos, de quem se dizia possuír o Livro de S. Cipriano, conhecia bem a Bíblia. Numa só imagem ele colocou a leitura dos seguintes versículos:

«Passados quarenta dias, Noé abriu a janela que fizera na arca. Esperando que a terra já tivesse aparecido, Noé soltou um corvo, mas este ficou dando voltas. Depois soltou uma pomba para ver se as águas tinham diminuído na superfície da terra. Mas a pomba não encontrou lugar onde pousar os pés porque as águas ainda cobriam toda a superfície da terra e, por isso, voltou para a arca, a Noé. Ele estendeu a mão para fora, apanhou a pomba e a trouxe de volta para dentro da arca. Noé esperou mais sete dias e soltou novamente a pomba. Ao entardecer, quando a pomba voltou, trouxe em seu bico uma folha nova de oliveira. Noé então ficou sabendo que as águas tinham diminuído sobre a terra. Esperou ainda outros sete dias e de novo soltou a pomba, mas desta vez ela não voltou. Noé esperou mais sete dias e soltou novamente a pomba. Ao entardecer, quando a pomba voltou, trouxe em seu bico uma folha nova de oliveira. Noé então ficou sabendo que as águas tinham diminuído sobre a terra. Esperou ainda outros sete dias e de novo soltou a pomba, mas desta vez ela não voltou». (Génesis, 8: 6,8,9,10,11,12)

Pois. E foi com os pés em terra e a pensar nos homens que o tio Domingos encimou a obra lavrada no espaldar com o harmonioso e significativo conjunto: as CHAVES DE S. PEDRO E A TIARA PAPAL.  

Datada - Cópia - CópiaCadeira feita logo após a independência da freguesia, excluir da decoração no espaldar a imagem da PADROEIRA só pode significar o valor dado a esse evento emancipador. A denominada capela anexa à Matriz de S. Joaninho, de invocação a Nossa Senhora da Conceição, tinha mudado de estatuto e, como tal, tendo a obediência mudado de direção, os ornamentos lavrados no espaldar da cadeira paroquial deviam espelhar essa separação, esse afastamento, essa direção.

A partir da independência, os cerca de três quilómetros do velho caminho, estreito, pedregoso e abarrocado que, a pouca distância do rio Calvo, há séculos ligava as duas povoações, deixaria de ser percorrido pelos habitantes de Cujó, por alturas de casamentos e batizados. Agora, uns e outros teriam lugar, ali, em Cujó, naquele templo, e não haveria nevão, invernia ou temporal que adiasse, retardasse ou impossibilitasse esses sacramentos da Santa Madre Igreja.

E adeus S. Joaninho. Agora nem de passagem para Castro Daire. Essa fazia-se pelo Fragão adiante, Fonte Fria, Chão do Irão, Lagoa até à ligação de Farejinhas. Qual é a «moçada» que sabe de todas estas “maçadas”?

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NOTA-1: Este texto já  estava escrito quamdo recebi, via Facebook, assinado por Cris Vaz, neta do tio Domingos,  o ”comentário“ que se segue, como esclarecimento ao primeiro texto que pubiquei sobre a cadeira com ilustração fotográfica (fotograma) de 2009. É uma exclente MEMÓRIA DESCRITIVA saída da MEMÓRIA de que sempre viveu e andou em redor dessa OBRA DE ARTE.

Cris Vaz

«Cris Vaz O meu pai disse que foi o meu avô que fez a cadeira, mas a madeira foi dada pelo Zeferino Cego e era de castanho e criado no Passal. De facto a cadeira já não está como foi feita, as pomba era branca e o ramo de oliveira era verde e as azeitonas pretas e arca era da cor da madeira. A estola era branca com as borlas douradas e a carapuça do bispo também era dourada. Por  isso já não se encontra nada igual. Mas mais vale assim do que ter ido para o lixo. E deixo uma dica: quando for para se desfazerem dela,  estou cá eu que com muito gosto fico com ela”».

NOTA-2: É da minha lembrança haver um frondoso castanheiro no Passal (certamente centenário) entre a Eira do Pardeirinho e o Cemitério, abrigo obrigatório dos ciganos em trânsito que no país faziam os seus negócios. Acampados provisoriamente ali, passeavam-se pela a aldeia a vender os produtos e a ler a sina. Lembro-me de uma cigana, com autorização da minha mãe, me ter pegado na mão e fez dela um livro aberto. Ainda hoje é.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.