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terça, 29 maio 2018 12:53

CASTRO VERDE - JOÃO DA LUZ, O INVENTOR

Escrito por 

TRAMAGAL - O MELHOR MUSEU EM 2018

«A História aponta exata e pertinentemente o que está oculto na série, aparentemente caótica, dos acontecimentos quotidianos. A história local narra factos circunscritos, mas seleciona-os e valoriza-os, na medida em que estes factos se projetam no campo nacional, consideravelmente mais vasto».Separata do «Boletim Informativo» nº 8 «História»,  Fundação C. Gulbenkian, 1962, pp 295)

2-M.Poços.Aljustrel-1942Ao saber que, neste ano de 2018, “o melhor museu do ano” foi o «Museu Duarte Ferreira» no Tramagal, firma indissociavelmente ligado ao campo e às alfaias agrícolas, lembrei-me imediatamente de um trabalho sobre “Arqueologia Industrial” que levei a cabo no Alentejo, enquanto professor que fui na Escola Preparatória de Castro Verde.

Nesse trabalho incluí, naturalmente, texto e fotos relativas às ferramentas de que o camponês dispôs ao longo da história e, por arrastamento, o nome de um inventor natural daquela vila alentejana, operário da firma «Prazeres & Irmãos» que, ao constatar um erro técnico no cepo e rasto da charrua de aiveca móvel para três parelhas, da TRAMAGAL, resolveu corrigi-lo e tornar mais barata e funcional essa charrua. Chamava-se João da Luz, pai de outro João da Luz, este último um dos amigos que deixei naquela vila alentejana. Lá para diante direi que alteração foi essa, com patente registada e tudo, ciente de que o apelido “LUZ” assentava bem no pai e no filho.

Trata-se de um trabalho académico não publicado e, por isso, certamente ignorado pelos habitantes daquele burgo alentejano, onde passei alguns anos da minha vida. Dada a circunstância, estendi o braço à estante da biblioteca, botei-lhe as mãos e digitalizei (sim...sim...naquele tempo o produto da investigação vertia-se para o papel à mão ou máquina de escrever) os retalhos que passo a publicar, permitindo assim aos meus ex-alunos (alguns deles são hoje meus colegas de ofício e amigos) terem acesso ao produto das minhas investigações feitas no decurso do ano 1979. Vejamos, pois,  o enquadramento histórico, e atentemos na dicotomia “meio rural/meio urbano” ou, transferindo para a terminologia atual, “centro/periferia”, um desertificado e outro superpovoado. Assim:

Fazendo uso de manuscritos inéditos existentes na Câmara Municipal de Castro Verde e Igreja Matriz da mesma vila, (...) recuemos ao ano de 1680. Mais precisamente ao dia 24 de Junho. Nesta data os oficiais da Câmara, reunidos em vereação, escolheram António Barradas de Bairos (sic) para guarda-mor da saúde a fim de este providenciar que as gentes da área não contactassem com eventuais passageiros de fora dela, devido à peste que teria surgido "em reinos estranhos para a parte de Castela». Poderia, para o efeito, fazer três «bandeiras» nas partes «costumadas», incluindo nelas a «gente do termo da légua a dentro» por o problema dizer respeito «a todos em geral como bem comum» (Lv. da Câmara, 1680).

Filhos-Cavandela-C.Verde-1979Aconteceu isto em 24 de Junho, como dissemos. Exatamente um mês depois, 24-01-1680, novamente reunidos para protegeram os moradores da vila e termo dos males do contágio «por haver notícias certas de que na cidade de Cádis e por toda a Santa Maria e outros mais lugares do reino de Castela continuam os ditos males ( ... ) e porquanto esta vila tem poucos moradores ( ...) mandaram que viessem a guardar todos os moradores das Piçarras, Monte da Ameixa, Furamatos, Horta de Bom Nome, Filipeja, Ferragudo, Cacchamorrinha, Monte de José Pires, que chamam Monte Novo, Cabeças de Cima, o Montinho Bernardo, Ronceiro, Vale do Gonçalo, Perdigoa, Monte da Chaminé, Cabeceiras, Álimo, Longos, Monte da Chaminé de Domingos Mestre, Lagoa do Sarilho, Almoleias de Baixo, Caldeireira, Garrochal, Serro do Lírio e daí todos os moradores que estiverem das confrontações para dentro». (Idem, idem).

Esta determinação camarária explicitando a obrigatoriedade dos moradores do termo da vila de Castro Verde a participarem nas “bandeiras" trouxe até nós os principais «montes» que então polvilhavam a área «de légua a dentro» e, por conseguinte, o número dos proprietários e rendeiros que no termo da vila tinham as suas moradias e terras trabalhadas, seguramente, à maneira dos tempos medievais, isto é, as alfaias utilizadas serem de tração «a sangue», quer dizer puxadas por animais.

Passaram aproximadamente três meses sobre esta determinação e, em 01 de Setembro, estando os oficias reunidos outra vez, compareceu reunião grande "cantidade de pessoas moradoras neste termo de Castro Verde abaixo assinados" requerendo para não serem o brigados a fazer as bandeiras na vila, alegando que não estavam para abandonar os seus “montes e casas onde vivem, alguns entre matos» (fixemos expressão “entre matos”) sendo alguns deles distantes da vila mais de uma légua e gastarem e ir e vir mais de dois dias, o que transtornava a sua vida de «lavradores».

FilhosMáquinaC.Verde-1979Alegavam ainda que poderiam ir «pessoas infecionadas» aos seus montes por estarem «remotos», não lhe podendo acudir por estarem (...) ausentes. Além disso «Sua Alteza, que Deus Guarde, quer tanto a conservação de seus vassalos dos montes como das vilas e cidades e com tanta razão os dos montes por serem os mais deles lavradores, donde depende a conservação deste Reino que com suas criações e lavoiras o ajudam a sustentar e que os moradores nesta vila façam suas vigias ( ...) é muito justo, pois o fazem no mesmo povo onde vivem».

E terminavam requerendo que o guarda-mor da saúde deixasse de os convocar para aquele serviço, até porque a vila tinha mais de «cento e cinquenta moradores» que bem se podiam guardar por si. Assinam a petição, Luís Afonso Faleiro, Estêvão Colaço, Manuel Mestre, António Martins, Tomé Conçalves, Lourenço da Costa.

duas assinaturas ilegíveis e treze assinaturas de cruz. Face à petição os oficiais (v.g. o Juiz Presidente, o Vereador e o Procurador do concelho) decidem «desobrigar» os moradores da vigia por entenderem «ser justo» na condição de levantarem «bandeiras nos seus montes». (Idem, idem). 

Para além de vermos que alguns dos signatários ficavam «entre matos» e que «dois dias em ir vir» com a guarda na vila era tempo de grande transtorno na sua vida de lavradores, referências que não deixam de ser instantâneos fotográficos da paisagem em redor e dos transportes e vias de comunicação, para além disto, dizíamos, o documento, põe em termos claros um problema muito em foco nos nossos dias: o confronto entre o “meio rural” e o «meio urbano» que a Geografia Humana procura esbater, mostrando a interdependência entre ambos.

Ora, se em alguma altura do processo histórico a cidade nos aparece a impor-se ao campo com os seus filósofos, pensadores e escultores, qual «foco de cultura e centro de educação» ao ponto de se defender que o «politée» (grego), o cidadão, o homem da cidade (...) o «civis romanus» ou antes o «homo urbanus» de que os Cipiões nos deixaram a imagem - o cavaleiro medieval, o humanista do Renascimento, o perfeito cortesão do barroco, o «honenet home», do século XVII francês, o gentleman da velha Inglaterra (in SOVERAL (Carlos E.) Sebenta de História da Cultura Clássica, Lourenço Marques, 1969-1970, pp. 6), todos filhos da cidade predestinados a «civilizar o povo e o mundo ...» se a cidade se impôs ao campo, «lato sensu» e a Europa se impôs ao mundo, é bom termos presente as afirmações de Lévi-Strauss acerca das sociedades dominadas e incivilizadas. Ao contrário certamente do que Soveral pensa, ele chama-lhe "primeiras" não só na antiguidade, mas sob muitos aspetos, em «dignidade" tomando por referencia Honorê de Balzac ao afirmar que «ninguém no mundo estuda melhor os seus problemas, sob todos os ângulos, do que os selvagens, os camponeses e os habitantes da província; é por isso que quando passam das ideias para os atos, as coisas aparecem completas" (in JACCARD (Pierre, Introdução As Ciências Sociais, Lv. Horizonte1 Lisboa., 1974,pp 64). Voltaremos a esta ideia lá mais adiante para nos certificarmos do quanto ela é assertiva..

Não temos dúvida que foi por conhecerem os seus problemas de camponeses e lavradores e conhecerem a dependência que as vilas, as cidades, enfim, o Reino, estavam em relação aos «montes" que os "sustentavam com suas criações e lavoiras" que, no exemplo histórico dado,  o campo se impôs à vila e a obrigou a defender-se a si própria, descartando-se os lavradores da obrigação de integrarem as “vigias” fora dos seus «montes».

A expressão "entre matos", já de si significativa, para uma área compreendida num raio de cinco quilómetros, aponta para a existência de matagais na região e é ampliada pela necessidade de se fazerem anualmente três batidas aos lobos na área concelhia, como rezam também os autos de vereação de 25-10-1680, com pena de pagar 200 reis todo o morador que não comparecesse para o efeito no lugar marcado para o inicio das mesmas, o que aconteceu de facto com 10 deles por não terem comparecido (Lv. Câmara., 1680). 

Não temos dúvidas que os matagais revestiam, por esta altura a paisagem rural de Castro Verde. A necessidade das batidas aos lobos com tanta frequência provam não só a sua existência, mas também a existência das matas onde se acoitavam. Podemos dizer o mesmo da existência de rebanhos que lhes serviam de alimentação.

Com efeito ainda nesta ano, no dia 01 de novembro, era arrematado em Praça Pública, por 300.OOO reis o Couto Grande, para a parte dos Giraldos, Couto que ia da estrada de Almodôvar até á estrada de Beja a João Monteiro, rendeiro da Comenda da vila para "mil e seiscentas cabeças de gado suas e mais de Sebastião Luís Serrano" (Idem, idem).

Tudo isto nos dá uma ideia de como a terra era explorada. A par da propriedade particular (laica ou eclesiástica) existiam os Coutos administrados pela Câmara e as "canadas”, nesgas de terra destinadas à passagem dos gados.

Este modo de ocupação e exploração do solo projeta-se no tempo e ainda em 1805 a Câmara arrematava as "canadas” pelo tempo de três anos por 2$400 reis cada ano. Os coutos do mesmo modo, foram arrematados por 300.000 a Joaquim Lourenço, para os explorar em pastoreio de 8 de outubro de 1803 a 15 de Março de 1804 (Lv. da Arrematações de 1803). Mas encontravam-se à venda em 24 de Junho de 1841 e 27 de Setembro do mesmo ano, conforme rezam os editais que tornam pública a "venda dos coutos grandes desta vila e o da vila de Entradas afim de se prover em parte à satisfação das necessidades públicas do Município, uma venda será feita a quem mais der, sendo contudo preferidos os criadores de gado moradores os vizinhos dos lugares em que estão estabelecidos os mesmos coutos ficando reservados os coutos pequenos para regalo do povo».

(...)

Mas não vamos tão depressa e voltemos ao ano de 1680.

Em 3 de Abril deste ano o ouvidor das vilas e Comandas da Ordem de Santiago, juntamente com os oficiais da Câmara de Castro Verde nomeavam Marcos Vizeu para depositário do cofre dos órfãos desta vila «por ser homem muito rico e onde seguramente estava posto o dinheiro ( ...) cinco ou seis mil cruzados (sendo) os moradores ( ...) homens pobres os mais deles (havendo) muito poucas pessoas capazes do dito cargo" (Lv. da Câmara, 1680).

digitalizar0567 - CópiaNão há dúvida. A maior parte dos moradores da vila de Castro Verde é pobre e a riqueza de Marcos Viseu afirmada neste documento é confirmada no seu testamento com data de 1683, já por mim publicado. Basta atentar nas terras que instituiu em morgadio para «enquanto o mundo durar», sem que tais terras pudessem jamais ser "vendidas, nem alienadas, nem obrigadas, nem aforadas, nem vendidas em vida, nem vendidas em vida, nem escambabas, nem obrigadas a fiança», mesmo que para tal houvesse «Breve de Sua Santidade ou Provisão de Sua Majestade, para. poderem fazer qualquer coisa destas". O que atesta tratar-se de uma figura de primeira grandeza na galáxia sociopolítica em que habitava.

(...)

E aqui chegados, repesquemos a afirmação deixada acima, atribuída a Honoré de Balzac, citado por Pierre Jaccard:

“Ninguém no mundo estuda melhor os seus problemas, sob todos os ângulos, do que os selvagens, os camponeses e os habitantes da província; é por isso que quando passam das ideias para os atos, as coisas aparecem completas".

Isto para dizer que, ciente desse axioma, indispensável era deslocar-me à oficina mecânica do Sr. João da Luz, em Castro Verde, a fim a saber da assistência por ele prestada às máquinas, enquanto mecânico e colher informações sobre a sua evolução na área. E foi aí que encontrei o «Ovo de Colombo».digitalizar0567

O seu pai, também chamado João da Luz, que foi operário da Firma “Prazeres & Irmãos», manipulando e estudando uma charrua de aiveca móvel para três parelhas, da TRAMAGAL, procedeu à sua alteração, registando a sua “invenção” sob a patente número 6636, depois comprada e comerciada pela própria “Prazeres & Irmãos”.

Aconteceu isto há cerca de 50 anos e a “Prazeres & Irmãos” que hoje (1979)  conserva em armazém algumas unidades em ferro fundido que serviram para os desenhos que ilustram este texto, deixou de vender as 300/400 unidades que vendia por ano por volta de 1970 e não vender mais peça alguma a partir de 1973, conforme informação colhida nos escritórios. Quer dizer, a charrua SB2, de três parelhas era ultrapassada definitivamente pela charrua industrial.

A invenção do senhor João da Luz consistiu em deslocar os pontos de apoio e de encaixe da aiveca do cepo para o rasto de modo a que só este fosse substituído, em vez de todo o conjunto. E isso beneficiou durante cerca de 40 anos os proprietários e/ou utentes dessa charrua, comprando uma só peça em vez das duas. Hoje, inventor e invento descansam em paz: ele no cemitério local e o invento no armazém.

Castro Verde/Junho/1979

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.