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sábado, 12 novembro 2016 18:18

ARTE FORJADA - 5

Escrito por 

HOMENAGEM AOS MESTRES DA FORJA, DO MALHO E DA BIGORNA

Em cada uma das grades, o gosto do primeiro proprietário do prédio, o sentido estético do mestre ferreiro para quem o ferro não tinha segredos. Constato que alguns desses mestres, além de manejarem o malho e a bigorna melhor do que eu algum dia manejei a caneta e o teclado do computador, mesmo sem nome, deixaram-nos provas evidentes de serem artistas de renome. 

C.D.Saída Esquerda-1 - rEDZ

Grades assentes em pequenos suportes de chumbo, muitos deles moldados à maneira das bases das colunas jónicas ou toscanas, pontas das espirais unidas e rematadas por flores-de-lis, também fundidas em chumbo, cada grade de janela ou de varanda é uma obra de arte  e condensa em si um mundo de ciência, de matemática, de geometria, de desenho, de técnica e de cultura, espelhos de vida e de morte. Filigranas não saídas da banca de um ourives, dedos tão sensíveis quanto as ferramentas leves usadas na sua manufatura, mas duma forja de ferreiro, mãos tão calejadas quanto o peso do malho usado na moldagem das espirais que, paradoxalmente, fazem inveja a certas rendas de toalhas de altar, feitas pelas mãos de uma avozinha de outros tempos que, rosto enrugado, lunetas caídas na ponta do nariz pingante de idade,  maneja diligentemente as piedosas agulhas e, sem olhar ao peso dos anos que lhe põe a coluna vergada como a aduela de uma pipa, morre a ensinar e a aprender. Hoje já não há avozinhas dessas. Nem são precisas. Netas e netos encontram todo o tipo de "rendilhados" na CHINATOWN da esquina.

Dessas varandas se saudaram e aclamaram reis e rainhas na sua passagem por Castro Daire, em tempo C.D.Saída Esq-2 - rEDZde Monarquia. Delas se deu as boas-vindas à República, em 1910, e se aplaudiu a trauliteira Monarquia do Norte, em 1919.  Delas se felicitaram Afonso Costa, António José de Almeida e outros dirigentes republicanos de passagem esporádica por aqui, a fazerem pela vida. Naquelas grades se estenderam coloridas colgaduras em dias de festa religiosa e/ou profana. Delas se ouviram os aplausos e os apupos durante os desfiles das concentrações legionárias em tempos de Ditadura e aplausos  à caravana de Humberto Delgado, em 1958, contra ela. E vivas a Américo Tomaz nas suas visitas salazaristas à vila e seus correligionários. Delas se aplaudiram e apuparam Mário Soares e outros políticos em campanhas eleitorais, após o 25 de abril. São varandas de portas e janelas que, apesar de mudas, quedas e enferrujadas, cada qual à sua maneira e na sua eloquência,  se recusam a deixar de olhar a ESTRADA NACIONAL nº 2, essa Fénix prestes a renascer das cinzas, segundo as notícias divulgadas na imprensa escrita e falada. Será (oxalá que sim!) a recuperação de uma artéria pronta a retomar a sua identidade primeva e a receber sangue novo que dê ânimo e vida e a um corpo moribundo. 

E foi por tudo isso que, de olhos fixos no ter, mas embalado, seguramente, na trama do ser, insuflando nas coisas de pedra e de ferro vida, sentimentos e afetos e, reciprocamente, absorvendo delas a imaginação e criatividade que emanam, que me dei ao trabalho de escrever todos estes textos e de fotografar alguns daqueles olhos rendilhados que, ora ridentes, ora chorosos, mais me fixaram, que mais me impressionaram e que mais tempo me detiveram a admirá-los num misto de prazer e de compaixão. 

IMG 0169 - Cópia rEDZLamúria minha? Talvez não. Deixada a arte e a beleza das grades de varandas e varandins  de ferro forjado, chegados ao fim da romagem, antes de fecharmos os olhos definitivamente, fixemo-los, por momentos, no portão da antiga QUINTA que foi de Francisco Ribeiro Morgado, aquela que, la no fundo de vila, tem atualmente por vizinho o INTERMARCHÊ,  onde   aportam as couves, batatas, frutos e outros produtos vindos de longe. Este portão simboliza bem AGONIA do Castro Daire histórico. E, como iniciei este trabalho junto à Igreja Matriz, núcleo histórico do burgo vilão, ali volto para lhe dar remate com a foto do principal portão de entrada no Cemitério, com data de 1859, bem pintado e preservado, já que ali o negócio é outro. Ele está sempre pronto a abrir-se e a receber quem chega morto. Pagando, claro está, pois numa sociedade de consumo até o solo Cemitério-1859-Redzsacro se vende. É só ver e INTERPRETAR o que resta do chão onde foi sepultada a FAMÍLIA MENDONÇA, a mesma que foi dona do solar brasonado onde, por ironia da história, foi instalado o pomposo CENTRO DE INTERPRETAÇÃO DO MONTEMURO E PAIVA. Pois! E, face a essa indesmentível verdade,  como  interpretar  aquela cabeceira de cruz vazada, granítica e brasonada, identificadora da família,  ladeada por pedras de cantaria nas quais foram lavradas piedosas inscrições bíblicas? Sim, como interpretar isto fora do mercantilismo do solo sacro? Ainda bem que, sendo nós memória,   tão só memória, a cultura e as mentalidades se vão moldando higienicamente à nova arte crematória.

Um dia, no futuro próximo ou distante, alguém navegando na WEB esbarrará com este e outros textos meus, meteoritos perdidos neste espaço sideral, digital, abstrato, esotérico. E, face ao inesperado encontro, interrogar-se-á sobre a sua valia, sobre os factos relatados, tecnologias, conexões feitas entre passado, presente e futuro, o  uso das metáforas utilizadas e ditadas por exigência desta minha postura ereta, indomável, de cidadão e de historiador.  E o historiador pode não ajoelhar,  nem rezar, mas é seu dever divulgar o produto da investigação e a reflexão que dela deriva. Ser um relâmpago que rasga o escuro, mesmo ciente da sua duração instantânea. 

FIM

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.