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domingo, 14 novembro 2021 14:44

SUSSUNDENGA

Escrito por 

A  HISTÓRIA E A VIDA

Morena, olhos grandes, cabelos pretos, muito pretos, lisos e luzidios, tinha a aparência física de uma mulher moura ou de indiana.

Conhecemo-nos numa aula de FILOSOFIA, no “Externato Marques Agostinho”, em Lourenço Marques. Namorámos e casámos. E não foram poucas as pessoas, amigas ou simplesmente conhecidas, que, tomando-me, sem dúvida, por caucasiano, a tomavam a ela, não raras vezes, como originária da Índia.

Não. Não era, mas, com efeito, parecia.

 

PRIMEIRA PARTE

1-MAFALDA E TRANÇAEra natural de Castro Verde, tinha mais três irmãs. Os pais, GUERREIRO COLAÇO PARREIRA LANÇA, e a mãe, AUGUSTA DE BRITO MATOS LANÇA, deixando-se atrair pela propalada política dos colonatos africanos, venderam tudo o que possuíam, por herança - MONTE DAS FONTAÍNHAS - nos arredores de Almeirim, concelho de Castro Verde e, em 1961, abalaram para Moçambique, com destino ao Planalto do Chimoio, SUSSUNDENGA, a 50 km de Vila Pery.

Eles e tantos outros. Urgia, por parte do Governo, que abalassem para o outro lado do mundo, não fossem eles arrepender-se da decisão tomada. Por mar? Nem pensar. Foram metidos num avião e, lá do ar, dentro daquela máquina voadora, esta família alentejana disse adeus aos planos ares campaniços, aos frios e calores da terra natal. O “pater família”GUERREIRO de seu nome, jamais tornaria a respirar a atmosfera onde foi nado e criado, mas o resto da família, mãe e filhas, por força da DESCOLONIZAÇÃO decorrente da Revolução de 25 de Abril de 1974,  cá  RETORNARIA, desfeitos que foram os sonhos que pesaram na bagagem que levaram no avião, anos antes, até às costas do Índico.

Avós maternosE foi assim. Confiados na propaganda política ligada aos COLONATOS só se deram pelo logro quando assentaram os pés na terra. Em vez de casa para se acolherem, como prometido era na propaganda, tinham apenas contentores e uns hectares de terra à sua disposição. A moradia, tipo alentejano, estava somente no papel. Mas prometida que estava, não tardou a ser construída, sem que, contudo, os recém-chegados tenham sofrido a desilusão, a frustração de quem espera uma coisa e lhes aparece outra.

Paciência.

Eles estavam longe demais para desfazerem a opção tomada. Não foram os únicos a cair no logro. Outros também o tinham sido. E a nenhum deles passou pela cabeça retornarem ao torrão natal, sem mais, nem menos.

Desiludidos e apreensivos, nem pensar voar de retorno e reaver os bens vendidos. Estava fora de causa voltarem a atrelar os machos à charrua e cultivar as terras do monte de que se tinham desfeito, sem passarem da cepa torta. Não. Excluída estava a labuta, ora semeando ora alternando as partes lavradas com as partes de pousio. Agora, lá longe, decididos estavam que, por estas bandas do Alentejo, da sua parte, as bestas continuariam soltas no pasto ou a servir o comprador que as adquiriu na “feira do Crasto”, no último outubro de 1960.

FAMÍLIA-FONTAINHASFace à realidade encontrada, com terras distribuídas, mas sem alfaias agrícolas para cultivá-las e contentores a servir-lhes de habitação provisória, de que valia chorar sobre leite derramado? Só havia que seguir em frente e esperar que melhores dias viessem. Urgia adquirir o que faltava e melhorar o que estava feito. Pai, mãe e quatro filhas menores, a saber, em idades descendentes: a Lita, a Mafalda, a Dália e a Felizarda, todas em idade escolar, não eram encargo de somenos.

As três mais velhas foram matriculadas no Colégio de Freiras (Vila Pery) (cerca de 50 km de distância) e a mais nova na escola Primária Local.

Mas, a tão longa distância de espaço e tempo, avivando o que me foi contado pela minha esposa MAFALDA, a par de vários estudos disponíveis na Internet sobre COLONATOS EM MOÇAMBIQUE, vem em meu socorro o laborioso e meritório trabalho de investigação histórica de MANUEL SILVA que, de parceria inicial com CARLOS ANTUNES, disponibilizaram nesse mesmo espaço (de acesso livre, sem a autorização de administradores, pomposo pendão que vemos por aí içado em algumas páginas no Facebook, de fúteis conteúdos) com o título “História de Vila Pery”, cidadãos/investigadores, pois, a quem sou devedor das referências a SUSSUNDENGA, ali, onde, de memória e por escrito, se tornam vivas as vidas mortas que pisaram aqueles solos, levadas pelo sonho da terra prometida.

IRMÃS-SUSSUNDENGASUSSUNDENGA se chamava o sítio. Terras da província de Manica e Sofala, solos com aptidão agrícola, numa visita feita à região pelo então Ministro das Colónias, Professor Marcelo Caetano, em 1945, ele ouviu as palavras de agradecimento da visita proferidas pelo senhor Eduardo Fernandes, assim: “os agricultores da circunscrição do Chimoio, velhos e nobres obreiros deste núcleo de colonização de Manica e Sofala” (…)” palavras que o Ministro agradeceu e prometeu “estudar a possibilidade de instalar ali uma colónia de pequenos agricultores trazidos da Metrópole, sob a proteção do Estado” (pp. 127 do Website).

E foi. O Governo, prosseguindo a política colonial e estudos agrários atinentes, em 1954, assentou que os vales dos rios Revuè, Lucite e Búzi, eram excelentes para “cultura de regadio”. O aval era dado pela “Brigada de Estudos Hidráulicos do Revuè”.

E em 1961, no dia 15 de fevereiro, as terras de Manica e Sofala receberam a visita do então Secretário Provincial, Engº PIMENTEL DOS SANTOS que, depois de estar em Vila Pery, “seguiu diretamente para os concelhos de Chimoio e Manica, a fim de visitar diversas obras, colonatos, estações experimentais e a Brigada Técnica do Povoamento e Fomento do Revuè e contactar com os agricultores e numerosas atividades dos concelhos”.

E já depois de estes colonos alentejanos e outros ali se terem estabelecido, que foi em 1961, aos quais me vim, muito mais tarde, a ligar por casamento com a MAFALDA, passados dois anos, isto é, em 1963, os “COLONATOS DO SUSSUNDENGA E ZONÉ” vieram a ter os seguintes melhoramentos:

Assistência técnica aos colonos evoluídos (18) e autóctones (48) com especial referência à maceração do “Kenef” que exigiu a construção de uma galeria de tanques no rio Revuè e uma barragem de terra com 6 metros de altura e 81 de crista, onde foram maceradores 117.863 quilos de fibra”. E no mesmo ano foi criada a “assistência médica aos colonos e seus familiares por um médico avençado”.

quatro manasO leitor reparou que no COLONATO havia 18 “colonos evoluídos” e 48 “autóctones”? Interrogou-se sobre a designação atribuída a esses trabalhadores da terra e a quem pertenceria ela antes dos serviços da agricultura a distribuírem pelos “colonos evoluídos”? Dá que pensar! Atribuídas por contrato com validade de 30 anos, os colonos só podiam chamar suas as terras e os aposentos, depois de passarem esse tempo a laborá-las, conservá-las e a pagar ao Estado o que estava estatuído nas cláusulas da concessão.

E neste mesmo anco, 1963, foi determinado pelos serviços competentes que “no bloco de povoamento, a cada família será distribuída uma herdade a ser explorada em regime de regadio, prevendo-se que ofereça um rendimento anual que garantam ótimo nível de vida. (B.O. N. 461 de Nov/Dez/1963)

Antes, porém, já GUERREIRO COLAÇO PARREIRA LANÇA e outros lavradores do colonato se tinham deslocado à RODÉSIA para adquiriram tratores e, com eles poderem lavrar os hectares de terra que lhes coube em sorte, terras expropriadas, seguramente, aos nativos como era regra entre vencedores e vencidos, ali ou em qualquer parte do mundo. Em território conquistado são os conquistadores ditam as regras.

GUERREIRO de nome e de APELIDOS, longe do Alentejo que o viu nascer, seguramente ramo que era de uma árvore da nobreza rural que, em tempos idos, nesse território combateu e expulsou os mouros, agora, em terras de Moçambique, terra de negros e de mouros, por maiores que fossem as adversidades, não iria contribuir para desmerecer o nome de batismo e de família. Tinha pela frente não um torneio de diversão e treino armado de espada, lança ou flecha, mas uma batalha de sobrevivência e uma prole inteira sob a sua responsabilidade, para alimentar e vestir. Por isso, no que de si dependesse, lutaria para sair vencedor da luta em que se meteu. E animado pelo sonho que o levou a voar sobre o continente africano, da Europa à Costa oriental do Índico, bateu-se naquele solo africano como um leão. E durante quatro anos, gozou saudável e socialmente os frutos do seu suor e engenho. Mas, passado esse tempo, um inimigo inesperado, um AVC, num repente e sem aviso, pô-lo fora de combate.

ESCOLA PRIMÁRIA-ALMEIRIMImpedido de prosseguir o sonho europeu em África - essa TERRA PROMETIDA - incapaz de pensar e agir, imobilizado, foi primeiramente hospitalizado num hospital da Rodésia, depois no Hospital do Macuti (termo da cidade da Beira) e, aos 48 anos de idade, deixou de respirar no seu leito doméstico, em  Lourenço Marques, para onde rumou  com a família.  

Do leito doméstico foi levado para a cama do descanso eterno, a milhares de quilómetros do solo sacro dos seus antepassados. E lá, nessa terra de sonhos, sossegada e honradamente dorme ainda.

Antes deste drama familiar, com as três filhas a estudar num Colégio de Vila Pery e outra na Escola Primária local, o marido, GUERREIRO COLAÇO PARREIRA LANÇA, a mourejar a terra e a esposa, AUGUSTA DE BRITO MATOS LANÇA, ocupada nas lides domésticas, DONA DE CASA se tornou, pois dona de casa já era. E tudo corria sobre rodas. Depois de levantada e mobilada a moradia, tipo alentejano, era, enfim, uma casa farta. Nela se reuniam, aos domingos e dias feriados, em fraternos e felizes convívios, os colonos amigos que moravam em redondo. Ele era os almoços. Ele era os lanches. Ele era o que nunca tinha sido no Alentejo, por falta de meios económicos e de vida social. E, de permeio, soava o CANTE ALENTEJANO, aquele que se ouvira e aprendera nas planícies e solos que alimentam as azinheiras e os sobreiros. As copas destas árvores e a sua cor verde foram substituídas pelas copas e cores dos jacarandás. E à paisagem rural circundante se juntava o nome sonoro, dengoso e cantante do colonato - SUSSUNDENGA - topónimo que, ele próprio, apelava às modas campaniças, aninhadas nas pregas da memória e da saudade. Momentos houve que o Alentejo através do CANTE se transportou para o PLANALTO DO CHIMOIO, ali, naquela terra úbere, onde, enganados, continuavam a chegar, desprevenidamente, europeus que, sabendo muito da terra e da agricultura, nada sabiam do subsolo político nacional e internacional. Nada sabiam a CONFERÊNCIA DE BERLIM, em 1884/85 e a consequente partilha de África pelos povos europeus. Nada sabiam da muito posterior CONFERÊNCIA DE BANDUNG, datada de 1955. Ignoravam, em absoluto, as razões dessas CONFERÊNCIAS, os seus objetivos e decisões. Aqueles e aquelas que, lá delineados, mais tarde ou mais cedo, lhes retirariam os hectares de terra que por agora, sob contrato com o Estado, esforçadamente laboravam. Era gente humilde, honrada, honesta, digna que, de boa fé, que confiava nos seus governantes.

GUERREIRO COLAÇO PARREIRA LANÇA, para seu bem ou para seu mal, não presenciou essa mudança. O AVC e a morte prematura pouparam-lhe essas angústias, esses dissabores. Mas a sua esposa AUGUSTA, ainda que ajudada, temporariamente, por um familiar, teve de abandonar a traquitana e dar por findo o contrato que tinham assumido. Devolveu tudo o que ainda chegou, temporariamente,  a chamar seu ao Estado e com a família rumou para Lourenço Marques, capital da província. E foi ali que as filhas órfãs de pai e a mãe viúva e doméstica, tiveram de esgravatar honradamente a vida, trabalhando e estudando.

E foi assim que ambos, com o estatuto de trabalhadores-estudantes eu conheci a MAFALDA. Foi numa aula de FILOSOFIA. Nessa cidade namorámos e casámos. Nela, na Universidade de Lourenço Marques,  estudámos a COLONIZAÇÃO e a DESCOLONIZAÇÃO. Por estudo e por vivência, conhecemos as duas faces da moeda. A “HISTÓRIA é formativa”. Com os estudos nos tornámos docentes. E docentes de HISTÓRIA retornámos ao solo pátrio. Fomos companheiros de estudo e de profissão durante muitos anos. Partilhámos a nossa saga de vida até 1997, ano em que, com 49 anos de idade, um cancro na sua vesícula me deixou viúvo.

SEGUNDA PARTE

Com aparência física a atirar para o Oriente, indiana ou moura a julgavam as pessoas amigas e conhecidas da nossa roda, como disse acima. Mas eu, que a conheci como ninguém, sem qualquer influência alheia, de leituras bastantes sobre gentes e culturas, sem entrar pela psicanálise que deixo para os especialistas, cedo me interroguei se, para além da aparência física, não havia nela, de facto, algo mais profundo a moldar-lhe os procedimentos, os gestos e os gostos, formas de pensar e de estar no mundo.

Comecei por notar a relutância que ela tinha em possuir um lar fixo. Casa própria. Um chão que fosse nosso. Tal só foi possível por grande insistência e persistência minha, fosse na primeira compra que fizemos do apartamento em Lourenço Marques, fosse da parcela da Cooperativa de Habitação em Castro Verde, fosse ainda na moradia que, finalmente, adquirimos, em Castro Daire.

Eu sentia que ela considerava a casa, o lar, como que uma prisão. O que teria isso a ver com a experiência negativa de ter visto fugir-lhe de baixo dos pés o chão que pisou e que amou na infância, o Monte das Fontainhas, no Alentejo, chão primeiro dos seus afetos? E, logo a seguir, poucos anos depois  perder igualmente o chão que pisou no Sussundenga, a quilómetros de distância? Lar próprio, nem pensar. Já a sua mãe lhe fizera notar, devido à sua falta de apego aos aposentos domésticos que “a casa não tinha ratos”.

CAMPISMO-MIL FONTESE estar fora de quatro paredes, o sentido de liberdade nela era bem notório quando se aproximavam as férias e começavam os preparativos para arrumar as tendas sobre o tejadilho do carro (foram vários) com destino a quaisquer dos Espaços de Campismo que frequentámos, por este Portugal fora, devidamente encartados e cotas em dia, anos seguidos.

O primeiro foi o de Vila Nova de Mil Fontes, na costa alentejana. Depois os do norte, Serra da Estrela (no Parque e fora dele, junto à Lagoa Comprida) na Praia de Mira, em Mirandela, em Vila Flor, no Montesinho, na Penha (Guimarães) em BragaCaminha, no Gerês, Parque da Cerdeira e junto a um ribeiro, afluente do Tâmega, em terras do Barroso. E de fora fica também o fim de semana que, com os filhos a gozarem as férias a seu gosto, independentes, eu e a minha esposa saboreámos o bem estar de um dos aposentos do Palace Hotel, em Vidago, ali, onde reis e rainhas gozavam o estatuto político e social próprios de uma Monarquia. A canadiana, dessa vez, ficou dobrada no carro.

Era feliz ao ar livre e adorava viagens, reais e fictícias. Perdia-se a contemplar a paisagem natural e o património edificado. Lia muito e projetava a sua imaginação, sensibilidade e conhecimentos nos esboços de desenho e pintura.

Em Lourenço Marques, no espaço de cinema da CASA DAS BEIRAS, casa regional de que fui DIRECTOR CULTURAL, não têm conta as viagens que fizemos até à India, levados nas películas de lá oriundos e lá produzidos. E as nossas pituitárias não se feriam com os perfumes exalados pela maioria dos clientes, bem distintos dos perfumes exalados pelos europeus que,  irmanados, tomávamos assento na plateia.

Cozinhava um arroz de caril de tempero e sabor tais que jamais qualquer “chef” de cozinha, com prémio Michelin ou sem ele, fez chegar à minha mesa, à minha boca e ao meu paladar.

CAMPISMO-BARROSOTinha, segura e marcadamente, o seu quê genético de oriental. Pois, analisados os seus gostos e procedimentos genuínos, conjugados com a sua aparência física, tudo a remetia, sem qualquer exame de laboratório, para as longínquas terras donde, a miúde, a julgavam ser originária: a Índia.

E se, como pensa Edgar Morin, no seu “O Paradigma Perdido”, a evolução genética carrega consigo não apenas a matéria biológica, mas também a matéria cultural, eu atrever-me-ia a dizer, apoiado nesse filósofo, que ela, a minha esposa, era, toda ela, um elo de ligação entre a CULTURA OCIDENTAL e a CULTURA ROM, cujo berço os estudiosos remetem para essas bandas.

NOTA: este apontamento de reflexão pessoal e histórico foi escrito para os meus filhos e netos. A eles, que dos pais receberam os genes, cabe compreenderem  as diferenças e semelhanças que têm entre si. Que se interroguem qual deles transporta no seu SER mais acentuadamente a “alma” do pai ou da mãe, do avô ou da avó. “Quem sai aos seus não degenera”.

Da minha parte, certo de que uma pessoa só morre efetivamente quando sente tornar-se um ser “social inútil”, por aqui me fico, vivo a registar MEMÓRIAS e fazer perguntas nos meus textos e nos meus vídeos. E a receber, oralmente ou por escrito, o feedback generoso das PEGADAS que vou deixando. O que me incita a prosseguir e a fazer, até morrer, perguntas sobre tudo e sobre nada. Sobre a sociedade, sobre as pessoas, sobre nós e sobre mim próprio. Sempre ciente de que tudo tem um porquê, com ou sem resposta.

 

PAIS E FILHAS

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.