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quarta, 16 março 2016 14:08

O HOMEM DA NAVE, DEVOTO DE DIANA - 5

Escrito por 

 DEVOTO DE DIANA (5)

Ora, eu que, depois de Aquilino Ribeiro ter mandado CAIR O PANO em o "Tombo no Inferno", desafiei o leitor/espectador a acompanhar-me neste proscénio, nesta cavadela de enxada feita num cantinho de terra que escapou ao bico da relha do experimentado homem da rabiça, vejo chegada a hora de, por minha conta,  mandar CAIR O PANO, definitivamente. E cai. Mas não sem primeiro eu estar convencido de que, se essa peça, por ventura, um dia voltar a subir ao palco nacional, não dispensará esta minha ADENDA. Precisará mesmo dela.

 

Nave-alho-porro-1E,  levantado que seja o pano, os amantes de Talma, encontrarão, logo a abrir, no meio do palco, não o penedo cuja fotografia ilustra a capa deste livro, mas um banco, um mocho daqueles que têm um furo ao meio do assento e, a sair dele, virado ao ar, posto a pino, um viçoso e viscoso alho-porro, prontinho a ser saboreado (bom proveito!) por todos os políticos e homens de escrita e de cultura que, cada qual a seu modo e segundo as suas responsabilidades, consciente ou inconscientemente levados pelos ventos da centralização, em nome de valores pátrios ou outros (ir a favor dos ventos é sempre mais fácil e cómodo do que ir contra eles) estão a ajudar a riscar do mapa este Portugal rural, este território que nos foi legado pelos nossos pais e avós, pelos avós dos nossos avós, esses labrostes e selvagens que viveram e sobreviveram entre matos e lobos. A viverem assim, é certo, mas cada um, velho e novo, tio e tia, irmão e irmã, avô e neto, todos cientes estavam da segurança e da força que lhes dava o sentido de pertença a uma comunidade, a uma alcateia, a uma tribo, a uma família. Nascer, crescer, viver e morrer na selvática comunidade rural rodeada de lobos.

 Por assim ser, a pensar neles e no rumo que o mundo tomou com migrações, emigrações e imigrações, voluntárias ou forçadas pelas mais variadas razões, é que este livro, compilação de alguns textos já publicados e outros inéditos escritos a pedido de um caçador, de um amante da natureza, é que veio ao mundo. Um livro que, falando de caça quando já não há caça (escrito com o halo visível e audível de um devoto da deusa Diana, ou de Santo Huberto, escolha que deixo livremente ao leitor) é uma homenagem às gentes laboriosas das serras da Nave e do Montemuro, a todos esses conquistadores, povoadores e lavradores que, com respeito e sem despeito, deixaram colar os seus cognomes aos primeiros reis de Portugal. Um hino a todos os homens e mulheres, que, contra ventos e marés, conquistadores,Nave-1 -Redz povoadores e lavradores continuaram a ser, acomodados na selva aquiliniana que resta, fazendo das aldeias e lugarejos clareiras de vida, mantendo as casas de pé, as ruas transitáveis, a couve troncha na horta, os pardais a chilrear nos beirais de prédios novos e velhos. Aqueles que, escolas primárias desertas e mudas,  postos do correio e tribunais fechados, não se deixaram ir nas apelativas atracções da selva urbana, não se deixaram caçar pelas luzes das grandes cidades, onde não faltam coisas boas e se sabe que, proporcionalmente à desertificação do interior, ao desequilíbrio demográfico campo/cidade, centro/periferia, interior/litoral, aumentam por lá, a par das universidades, das bibliotecas, dos centros de investigação, dos hospitais, as choças e as luras pagas a peso de ouro, destinadas às presas da reserva de caça nacional, reservadas a todas as presas indefesas. Ali, fechadas, onde o instinto da liberdade inscrito no código genético de todo o ser vivente, acicatado pelos anos, assume foros de revolta, pois em cada residente, curvado, derreado pelos invernos e tratos, existe o selvagem "homo eretus" das florestas, existe o "homo sapiens" pronto a escapar-se na primeira oportunidade e a retomar a primitiva liberdade perdida. Só que, à vista destes sinais, detectadas tais intenções pelo caçador ou pelo cabo de ordens de serviço, as portas do covil são fechadas a sete chaves e os soporíferos são misericordiosamente diluídos nas refeições. E a colmeia fica em paz. Não se ouve um zumbido de abelha. As abelhas em zombies se tornaram e deambulam pelos espaços livres, pelos favos abertos, olhares vagos, vítreos, perdidos em alvos incertos.  Seres sonâmbulos não conhecem ninguém, nem por alguém são conhecidas. Depois, para sossego e conforto dos demais residentes, se necessário for, as presas rebeldes são postas em cadeirões e sofás, onde, sentadas, num estado dormente por  força dos fármacos,  a cabecear no vazio, "sim, senhor...sim, senhor...sim, senhor"...gozam o único movimento que lhes resta dos lestos gestos do ancestral "homo habilis". É isso. Estes prisioneiros, frutos que são do avançado estádIo civilizacional da humanidade, nenhum deles se dá conta do tempo e do espaço em que adormece para sempre. Um número que se risca da estatística dos vivos. Uma vaga em aberto. É o viver e o morrer na civilizada comunidade urbana do século XXI,  rodeada, não por lobos, mas por profissionais domesticados à feição da sociedade criada.  Enfim, um aspecto apenas do preço das políticas levadas a cabo, ao longo da história, pelo "homo demens", pelo "homo degradandis". O responsável pela existência dos pequenos, médios e grandes aglomerados populacionais, onde a caça é outra. O cidadão que legisla sobre a organização e administração do território, inclusive venatório, sem distinguir um gaio de uma poupa. O "homo urbanus" que, literato ou não, considera o "homo rusticus" provinciano e primitivo só porque este, a viva voz ou em letra redonda (em vídeo, revistas, jornais, livros e Facebook) alardeia o seu apego à natureza e defende uma relação equilibrada e sadia entre TERRA GENTE e ANIMAIS".

FIM

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.