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segunda, 27 abril 2015 20:31

INFERNO 8

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INFERNO (8)

No dia em que vão canonizar dois papas, prossigo e ponho fim ao número de artigos, cuja matéria está alojada, há alguns anos, no meu velho site. E, bem a propósito, vou ilustrar este último com o desenho que inicia a edição «Divina Comédia», (Edição Sá da Costa, 1958), livro de grande influência na descrição de todos os infernos que nos foram apresentados nos «catecismos» de infância. Continuando:

IMG 2229A imprensa diz-nos que «recentemente, João Paulo II, afirmara que também o céu e o inferno não existem enquanto «locais físicos» – nem o céu é o paraíso das nuvens, nem o inferno a aterradora fornalha» (Jornal de Notícias”, de 99-08.08)

Abro aqui um parêntese para lembrar os amigos que estou a repescar para o Facebook textos que publiquei, há tempos, no meu velho site. Continuando:

É uma outra «visão» a que agora se apresenta. Mudam-se os tempos, mudam-se a vontades. Frei Manuel da Luz, no conceituado jornal diocesano «Voz de Lamego» escreve que «a Igreja do Vaticano II está a léguas da Igreja intolerante da Inquisição. A missa em português está a milhas da monótona missa em latim. Teillard de Chardin, ainda antes do Vaticano II disse isto: Jesus falou do inferno 17 vezes; no entanto, proíbe-nos de pensar sequer que alguém lá caiu».

Assim tão simples? Tiro e queda? Encasquetada na cabeça dos crentes há séculos e durante séculos a fogueira atiçada pela literatura doutrinária, «puf,!» a cultura do Inferno desapareceu assim, sem mais nem menos, de um momento para o outro?

Rui Marques Vaz, de Setúbal, atento aos tempos e às novidades que sobre a matéria a imprensa vai divulgando, discorda do esboroar do edifício infernal e, por isso, fez chegar o som da sua trombeta ao «Correio da Manhã». Que não senhor. «As interpretações erróneas a que se prestou alguma comunicação social quanto a uma alocução do Santo Padre, inserida no âmbito das Catequeses do Romano Pontífice proferidas nas «Audiências Gerais de Quarta-feira», excedeu os limites da razoabilidade pelas ilações inimagináveis que se retiram quando ao ensinamento da Igreja sobre os «Novíssimos» do homem (a Morte, o Juízo, o Inferno, o Paraíso), concretamente sobre o Inferno, apenas porque Sua Santidade afirmou «ipsis verbis», e tão somente, que o Inferno não era um local físico. (...) «Vós, que entrais, abandonai toda a esperança» Se assim o disse Dante Alighieri na «Divina Comédia» em nada diminui o impacto tremendo das suas palavras perante a alocução do Santo Padre», (Vaz, 2000:23)

É. O Inferno existe. Dante Alghieri «dixit». Podia lá deixar de ser? Podia ser o contrário? Como é que um quadro tão necessário, moldura de fogo, fundo de brasas, tição aceso, gritos, lamentos, uivos, horror, tristeza, urros, tormentos, dor, blasfémias, pavor, arruídos, maldições, alaridos, sede, fome, gemidos, cânticos danados, malfadados, «rio de nove meandros» sem novenas, arrais obedientes, «entra, entra e remarás/não percamos mais marés...ora vai lá embarcar/que me estás importunando...imbarquemini in barco meo...quem morre por Jesus Cristo/não vai em tal barca como essa» cratera em cone, pião das nicas, baraço, serpente enrolada, escadas em caracol a deixar o mundo, «círculos, fossos, bolgias» e lá bem no fundo «a cidade de Dite», um quadro assim, barroco, brasonado, talha dourada, densa, folha recorvada, podia lá ser apeado com alaridos de imprensa – a palavra é fogo, a palavra é dinamite - da galeria dos iniciados, dos convertidos? 

Existe, pois, o Inferno. Dante Alghieri o disse na «Comédia» só mais tarde apelidada de Divina. Fê-lo, pois, na Divina Comédia, mas não sem primeiro ter consultado Homero e Virgílio, aqueles que, antes dele, desceram ao subterrâneo mundo dos mortos. Aqueles que, com Jerónimo Boch, forneceram os ingredientes pictóricos que viriam a dar cor, luz, sombra, cheiro e alma a todos os quadros sem moldura elaborados pelos posteriores criadores de infernos, purgatórios, paraísos e barcos de passagem «ora venha ho caro aree» Quadros que, comparados com os «revelados» textos bíblicos (cf. Isaías, 33:14, Sofonias,3:8, Mateus,3:11-12, Mateus,25:40-46, Marcos,9:42-43-44-45-46-44-48, Lucas,3:16-17, Tessalon.1:7-8-9, Judas, 6-7-8, João,14:9-10-11), reduzem estes a meras, descoloridas e ingénuas pinceladas «naif». De facto, descobrir o Inferno nas Sagradas Escrituras, tal qual o viram, descreveram e pintaram poetas imaginativos, teólogos interesseiros e pintores delirantes, é, seguramente, um trabalho infernal. 

Palavra derivada do latim (infernus, a, um) significando «inferior, baixo, debaixo, infernal, do inferno» (Sousa, 1984:475), bem adequada ao mundo subterrâneo dos mortos descrito por Homero, Virgílio, Dante e tantos outros que os seguiram dotados de fértil imaginação - quem conta um conto, acrescenta um ponto - que termo, que palavra virá, agora, enriquecer a rica língua, que com pouca corrupção se julga que é latina, que palavra surgirá adequada à nova «visão catequística», posto que estar no «estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados» não significa estar num lugar «inferior» num lugar «baixo» ou estar «debaixo» de qualquer coisa ou de alguém?

FIM

NOTA: texto «postado» no Facebook em 27 de abril de 2014, recebeu os seguintes «gostos» e «comentários»:

 

13 Manuel Ferreira, Antonio Silva e 11 outras pessoas gostam disto

Comentários

Abílio Pereira de Carvalho27 de Abril de 2014 às 8:38 · Gosto · 

 Luisa MarçalLuisa Marçal Professor, bom dia! Estou de queixo caído...., isto não é um texto, uma nota, isto é uma grande viagem na história. Quanta envergadura?!Adorei!!!Deixe-me ir fazer café que eu tenho que ler isto outra vez. 27 de Abril de 2014 às 9:08 ·

 Abílio Pereira de CarvalhoAbílio Pereira de Carvalho Grato pelo reconhecimento do trabalho, amiga Luisa. Muitas leituras, muita vontade no esclarecimento das coisas, alguma reflexão e poder de síntese suficiente para não cansar os amigos e leitores que, face às coisas do mundo, se não satisfaçam com um "amem".27 de Abril de 2014 às 9:57 ·

  Luisa MarçalLuisa Marçal Grata estou eu, Professor!Cem vidas não me chegariam para..., para..., olhe: para produzir algo como isto.A fazer lembrar a escrita de Aquilino Ribeiro... Concorda?Um bom dia para si! :) 27 de Abril de 2014 às 9:53 

·  Abílio Pereira de CarvalhoAbílio Pereira de Carvalho AQUILINO? Estou a reler "O Homem da Nave" e só tenho pena que tenham metido numa igreja (dita Panteão) um revolucionário, um republicano, um anticlerical, por força dos valores literários que guiam os nossos políticos e intelectuais. Julgo que andarão bem os familiares de Salgueiro Maia, que a tal se opõem.27 de Abril de 2014 às 10:33 ·

 Luisa MarçalLuisa Marçal :) sempre acutilante! Mas não me respondeu ;)27 de Abril de 2014 às 10:38

·   Abílio Pereira de CarvalhoAbílio Pereira de Carvalho Bem, a pergunta põe-me numa situação delicada. O mais que posso dizer-lhe é que na apresentação do meu livro "Julgamento" a responsável por essa tarefa disse que a "minha escrita lhe fazia lembrar Torga e Aquilino". Outras pessoas têm insistido nisso e outras o têm silenciado. Eu digo que piso o mesmo terreno, lido com as mesmas gentes, uso a mesma ferramenta, que é a Língua, só me falta o engenho e a arte. Mas se for ao meu site "www.trilhos-serranos.pt" encontrará um texto dividido em TRÊS parte com o título "O homem da Nave" e substítulo "Um conto que vos conto", no qual penso andar de mão dada com o Mestre. Dê uma espreitadela. Talvez goste. 27 de Abril de 2014 às 10:58 ·

  Luisa MarçalLuisa Marçal ... não me enganei : )Obrigada! Irei ver, sim! 27 de Abril de 2014 às 11:01 ·

   Elisa Camacho Elisa Camacho Admiro e aprecio tudo aquilo que escreves .Por isso, concordo sempre contigo .Obrigada.27 de Abril de 2014 às 15:24 ·

Antonio Silva Antonio Silva Muito complicado.Um abraço1 h

  Manuel Ferreira  Manuel Ferreira Como sempre, à frente






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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.