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terça, 01 outubro 2019 19:17

ABÍLIO “O CIRURGIÃO”

Escrito por 

TEMPOS ANTIGOS...

Deixei escrito no meu livro “CUJÓ, UMA TERRA DE RIBA-PAIVA”, editado em 1993, que o meu pai, Salvador de Carvalho, desde que regressou à aldeia depois de ter cumprido o serviço militar, em 1927, fez uso da aprendizagem que adquirira na tropa ligada ao tratamento de doentes ou feridas.

 Desde que tenho memória me recordo não faltarem em nossa casa, ligaduras, pensos, agrafes, pinças e desinfectantes líquidos e em pó. E não têm conta as pessoas que recorriam aos seus préstimos com uma dor de barriga, uma dor nas costas, para levarem uma injeção receitada por médico, ou com cabeça rachada em fim de festa, devido a pancadaria. A nossa casa era uma espécie POSTO DE SAÚDE DE URGÊNCIA e o meu pai a tudo dava “remédio”.

E foi por eu assistir a tudo isso que um dia, sem tal esperar, pude socorrer a Maria da Conceição Teixeira da Silva, quando ela, encostada à madrinha, apareceu lá em casa com um golpe atravessado na canela da perna. Ía segar feno montada na burra com a gadanha às costas. Caiu e foi o que se viu: um lanho enorme atravessado na canela da perna e sangue a jorrar no chão, como bica de fonte.

Em tais apertos não havia morador em Cujó que não corresse para a casa do “tio Salvador”. Só que, naquele dia, o meu pai estava ausente e tive eu de substiuí-lo. Tinha QUINZE para DEZASSEIS anos, mas averbava no meu currículo de vida lições “visuais” bastantes para fazer o que ele fazia. 

Mandei sentar a Maria da Conceição na escaleira de acesso ao primeiro andar, onde se guardavam os frascos de desinfectantes, agrafes, pinças e mais material de tratamento e cirúrgico. Sentada na escaleia e encostada à parede, eis-me a tentar unir e suturar os lábios daquela boca aberta a sangrar. Os dedos da mão direita apertavam as partes rasgadas e a pinça, na mão esquerda, apertava um agrafe atrás do outro. Só que, quando chegava ao último, o primeiro soltava-se, abria-se e eu tinha de repetir o gesto. Assim mesmo, a sangue frio, sem anestesia. A moça chorava de dor e eu, mal sucedido à primeira, repetia a segunda. E agrafe após agrafe, suando como se estivesse a cavar uma horta para couves tronchas, tentativa após tentativa, cheguei ao fim. Foi, seguramente, um alívio para os dois. 

Agrafes intervalados e fixos, corri a polvilhar a ferida com sulfamidas, a tapá-la com um penso de algodão envolvido em gaze. Depois uma ligadura em torno e suspirei para comigo: “desta já estou livre”.

Disse-lhe que viesse à noite para ouvir o veredito do meu pai. E veio e ouviu. O meu pai, depois de se inteirar do sucedido, como fora e o que eu fizera, sentenciou: “não se mexe nisso durante três dias, depois vens cá para tirarmos a ligadura e ver o resultado”.

E assim foi. Ao retirar a ligadura, os agrafes pareciam dentes a sorrir. Ficaram mais uns dias. O meu pai limpou e desinfectou o ferimento e tomou conta do resto. Deu-me os parabéns pelo trabalho “BEM FEITO” e, em devido tempo,  retirou os pontos. 

O mais, e passados tantos anos, é o que nos conta, em discurso directo, a própria Maria da Conceição, no vídeo que alojei ontem no Youtube, cujo link anexo hoje em rodapé. A versão dela difere um nadinha da minha, mas eu estou em crer que a memória dela a traiu no “reconto”. É que, para além de eu ter bem presente o facto, nem podia ser de outra maneira. Eu só podia dispor do “material cirúrgico” lá em casa. Não era possível fazer tudo o que fiz no sítio da queda. Estive para corrigi-la durante o depoimento, mas para quê se o BEM estava feito e os protagonistas eram os mesmos? Aqui ou ali tanto fazia. Também não filmei a marca da sutura porque reparei que ela estava de meias e não lhe quis dar o desconforto de tirá-las. Mas, antes da nossa conversa filmada, perguntei-lhe por isso e ela me disse que havia lá um “sinalzito”, apenas. Igual pergunta lhe tinha feito há anos na Farmácia Gastão Fonseca, em Castro Daire e, nessa altura vi que podia orgulhar-me de, tão jovem ainda, sem médico nem enfermeiro por perto, ter feito aquela cirugia. Assim, mesmo, sem anestesia. Ela foi uma HEROÍNA. Aguentou tudo. E como bem disse “naquele tempo quem se podia curar por aqui...”

 https://youtu.be/zYR0e3yxwbI

NOTA: é só mais uma “pegada” minha, deixada para os meus filhos e netos...em memória do meu pai. Sem os seus ensinamentos, esta história humana não podia ser contada, nem por escrito nem ao vivo.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.