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segunda, 18 fevereiro 2019 13:26

«A RUA ESCURA» - UM LIVRO DE A. COELHO LOUSADA

Escrito por 

SOALHEIRO CITADINO

Em 23-03-2013 publiquei no meu velho site, hoje repositório histórico do muito que ali escrevi e se mantém online, o texto que se segue, hoje mesmo migrado para este meu novo e ativo espaço. Assim:

 

Rua Escua-1 - CópiaDesta feita, e porque as tardes soalheiras me permitem isso, entretive-me a seguir as linhas que fazem a trama do livro “A Rua Escura” de A. Coelho Lousada, edição ee bolso de 1941, da Editora Educação Na ional, Lda. Tinha eu 2 anos de idade.

 Formato 14/10, o autor coloca a narrativa na cidade do Porto, no tempo do domínio filipino. A obra, como todas as novelas ou romances bem escritos, mostra-nos espaços, enreda os interesses dos protagonistas, pondo-os a falar sobre política, questões sociais, amores, ódios, ciúmes e mortes.

Uma dessas mortes foi o assassinato do jovem fidalgo Filipe de Lucena, na Rua Escura, às mãos do pasteleiro burguês, Bartolomeu de Basto. Este perdido de amores e ciúmes pela donzela Beatriz, que aquele, fidalgote assassinado apostara conquistar pelo custo de uma «ceia» paga pelos seus amigos e comida no estabelecimento do rival. O autor dá mostras claras de não se perder de amores pela «nobreza», ou, pelo menos, pela falta de nobreza dos actos praticados por alguns dos membros de tal classe.

Aportou este livro na minha biblioteca inserido no espólio da casa Figueiredo Girão, com a demais papelada que salvei do «Aterro Planalto Beirão», graças às diligências que tomei atempadamente com a ajuda do meu amigo, falecido entretanto, Araújo e Gama, encarregado de mandar esvaziar a moradia, posta à venda, após a morte dos últimos proprietários da família com aquele apelido.

Ora, desse livro, pelo colorido que o autor nos dá do Porto e das suas gentes, não resisto a transcrever parte do último capítulo que tem por título «EPÍLOGO» e subtítulo «AO SOALHEIRO», onde, no seu dizer, as «gazeteiras» treinavam o verbo de bem querer e mal dizer, tudo depois de assistirem à missa. Ora vejamos:

«A missa do dia, que era um domingo pela volta das dez e um quarto, tinha concluído e a tafularia da terra desfilava com o seu aparato de pagens e criados, formando pequenas fileiras de dez e doze criaturas, quase sempre a um de fundo, marchando com toda a gravidade. Por ali seguia uma dona respeitável, levando entalado o pescoço em um enorme cabeção levantado, espécie de leque que, no tempo de Filipe I, bastante voga teve. Era precedida por dois lindos meninos e seguida por três criadas, um pagem com um banquinho de ajoelhar e outro com o livro de orações; além desfilava um cortejo de mulheres da burguesia, envoltas nas suas mantilhas, caminhando a passos lentos, solenes, com ares de penitentes em procissão da semana santa; mais para o outro lado, uma turma de negociantes conversando nas suas transacções; por acolá, duas ou três damas a quem seguiam outros tantos cavalheiros dizendo requebros e finezas, caminhando sobre as pontas dos pés, e terjeitando; enfim, o Porto mostrava os representantes de todas as classes dos seus moradores à luz do sol. As nossas comadres, com os tafes da época, não se esqueciam nunca de, terminada a missa, virem desabafar e tirar a lume todas as reflexões que na igreja entre "paters" e "avés" tinham vagar de fazer, se é que já lá mesmo não tinham podido deixar de desabafar.»

RuaREZ

Ficámos a saber como depois da missa o soalheiro se animava. Estou em crer que seja nos tempos do domínio filipino, seja nos tempos em que este livro foi dado à estampa (1941),  seja nos tempos de hoje, a grande mudança só se operou no vestuário e no desaparecimento dos «pagens», pois no resto, no gosto de todos meterem o bedelho na vida alheia, o soalheiro continua. E o leitor, passando os olhos por este meu site, quedando-se nos seus conteúdos (tantos eles são) fará a justiça de testemunharar que eu, lendo e escrevendo, em dias soalheiros, não perco o meu tempo em soalheiros tais.

Naquele a que se reporta o livro, o jovem fidalgo tinha sido apunhalado na própria casa do pasteleiro, na Rua Escura, por razões de amores e  ciúmes. Mas ali, no soalheiro, não se curava de saber como foi. Tinha mais sabor, mais picante, dizer-se que o pasteleiro tinha enriquecido a fazer guisados com carne humana. O cadáver tinha sido encontrado morto e retalhado aos bocados, tudo com a ajuda de uma bruxa, judia, cristã-nova. Quem havia de esperar isso de «um bom cristão», como era pasteleiro Bartolomeu Basto?

 E o autor termina assim:

«O caso é que a versão até nós mais seguida e popular do sucesso que narramos tem sido a que saiu da língua de prata da senhora Ana Gertrudes. Para apurar a verdade da nossa história não pouca paciência foi precisa».

NOTA: Um dos leitores ou leitoras deste livro, antes dele chegar à minha biblioteca,  colou no verso da página que lhe serve de rosto a foto da «menina» que eu aqui reproduzi para ilustrar este comentário. É uma homenagem que faço, a todos os que o leram, tenham lá sido eles quem foram. Se leram...meus amigos eram.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.