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sexta, 01 fevereiro 2019 20:43

RETORNADOS

Escrito por 

RETORNADOS (COM MUITA HONRA)

A revista “SÁBADO”, de 31 de janeiro de 2019, publicou uma crónica sobre os “RETORNADOS” com o título “A REVOLUÇÃO QUE VEIO DE ÁFRICA”.

Semelhantemente à extensa reportagem que, há anos, foi publicada em “O Jornal”, assinada por Fernando Dacosta, li, com agrado e avidamente o que, passados todos estes anos, esta “SÁBADO” escreveu.

Revista

A páginas tantas, diz-se ali que a “integração dos 500 mil portugueses que voltaram das ex-colónias em África foi o maior repatriamento da descolonização europeia, quando medido em função da população do país. É uma história colectiva bem sucedida (...que...) modernizou as cidades e aldeias do inteior, forneceu peritos para expansão mais rápida da Saúde e da Educação, lançou milhares de novos negaócios, transformou a rádio e a televisão e acelerou a liberalização dos costumes”.

 

Já dei o meu contributo a este peditório no meu livro “MEMÓRIAS MINHAS - PORTUGAL, MOÇAMBIQUE”, mas a revisitação feita agora por esta rsvista, suscita-me, em apoio do que foi investigado e dito, dois ligeiros apontamentos, assaz significativos.

óculos-redzO primeiro refere-se ao encontro que tive ocasionalmente em Faro, com o senhor empresário MARTINS, que eu conhecia de Lourenço Marques. Com porta aberta de OURIVESARIA e ÓCTICA naquela cidade, foi lá que comprei as alianças de casamento e uns óculos de tartaruga, que usei anos sem conta.

Aconteceu que ao passar na rua principal de Faro, aberta exclusivamente a peões, aquela que desemboca no Largo das Pirâmides, colodo à marina, deparei-me com a “ÓCTICA MARTINS” situada numa esquina com montra rasgada em ângulo recto. Associei imediatamente o nome ao meu amigo de Além-Mar e espreitei através do vidro. Não me enganei. Por detrás do balção lá estava ele, pronto a atender os clientes que lhe entrassem porta dentro.

Eu entrei e, depois da surpresa e cumprimentos habituais entre pessoas que se conhecem e estimam, felicitei-o pelo excelente espaço comercial, amplo e bem situado que tinha arranjado para continuar no mesmo ramo de negócio.

Pois, mas espere aí. Deixei o ouro de parte e isto, que agora vê, não era assim. Aquilo que hoje são montras rasgadas eram apenas duas janelecas e fui eu que fiz isto tudo. Ainda encontrará, rua abaixo, algo semelhante ao que isto era. E as montras que agora aparecem rasgadas vieram na sequência do meu exemplo. Por aqui pensava-se “em pequeno”. Nós viemos rasgar horizontes, tal qual eu rasguei estas montras.

E fixando-me o rosto perguntou, meio estupfacto: “ainda usa esses óculos? Já estão desactualizados. Ora veja aqui estes?”.

abílio ReduzTá, bem, tá. Fiquei em substitui-los depois e foi o que aconteceu. Lá, como cá, ele estava no seu papel de comerciante e, na verdade, tinha toda a razão. Acontece que, óculos como queles, nunca mais tive. E guardo-os como jóias. Através das suas lentes me chegou ao cérebro muito do conhecimento académico que ignorava, muita da minha mundividência, forma de ser e estar no mundo. Através dessas lentes vi pela primeira vez a Mafalda, a mãe dos meus filhos. Por isso eles ilustram este apontamento. Assentavam-me bem no nariz e se os troquei, não foi por imperativo da moda, mas porque a sua estrutura de tartaruga não se prestava a receber as “lentes bifocais” receitadas pelo médico. São uma relíquia.

Outro apontamento que aqui deixo resulta das palavras escritas na revista citada, atribuídas à jornalista Fernanda de Oliveira Ribeiro (SIC) acerca de Emídio Rangel. Diz ela que ele “foi um líder nato que, num país de chefes e hierarquias, pôs de lado a formalidade - e enquadra-a, em parte, na maior abertura e informalidade que ela própria, vinda de Moçambique, conheceu”. E é aqui que entro novamente eu, para dar mais um bocadinho de substância ao “dito e feito”.

Foi assim.

Retornei a Portugal com o bacharelado em HISTÓRIA, concluído na Faculdade de Letras da Universidade de Lourenço Marques. Mas cá chegado, tratei de completar a licenciatura que era de CINCO ANOS.

Matriculei-me na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa e numa das cadeiras vim a conhcer pessoalmente o Professor Doutor ANTÓNIO BORGES COELHO.

Aconteceu que, logo na primeia aula, sala cheia, talvez 60 ou 70 alunos, ele chamou, um por um, à sua secretária visando uma apresentação suscinta, da nossa parte.

E foi nessa apresentação que eu, mais desprendido do que os outros, entabulei conversa com ele, dizendo-lhe que ele não me conhecia, mas que eu o conhecia muito bem. Como assim? Retorqui: fiz o bacharelato em Moçambiaue e na cadeira da EXPANSÃO PORTUGUESA, regida pelo Professor ALEXANDRE LOBATO, fomos obrigados a ir beber nas fontes, nos estudos, teses e antíteses, tudo o que sobre essa matéria corria nos meios académicos. E nesse lote entrava o livro da sua autoria, que tal assunto versa.

Virado para ele e de costas para a turma, ouvi o murmúrio na sala. Não era hábito, por cá, como era lá, os alunos falarem assim, desabridamente, com os professores. E ele, de frente para a turma, deve ter-se apercebido, dos cochichos e olhares de soslaio, e puxou por mim. Fui desbobinando e a dada altura avancei que havia um assunto tratado por si no seu livro, que me deixou pendurado nalgumas perguntas sem respostas. Algumas dúvidas.

Diga, diga. E eu disse. Na revolução de 1383/1385 parte da velha nobreza não esteve com o Mestre de Aviz e os seus bens foram distribuídos pelos seguidores deste, incluindo os que vieram a formar a “nova nobreza”. 

Mas, assentes as águas, alguns desses nobres regressaram e não estava claro se os bens lhes tinham sido devolvidos ou, na impossibilidade, indemnizados por isso.

E aqui chegados, ele, sorrindo, disse alto e bom som, para surpresa dos restantes alunos. Pois se ficou com dúvidas, veja se as tira, pois enquanto estiver nesse caminho da dúvida, está no bom caminho para professor e historiador. O cochicho na sala silenciou-se.

E, inteirando-se ele que eu estava a dar aulas em Castro Verde, vinha mesmo a calhar pôr-me ele as suas dúvidas. E o caso era ele saber da existência, na Câmara de Castro Verde, de um baú cheio de manuscritos. Mas ignorava, inteiramente o seu conteúdo. O meu primeiro trabalho para a cadeira seria, pois, inventariá-los e apresentar-lhe uma lista cronológica com a identificação dos respectivos conteúdos.

AB-Capa-3 - CópiaE assim fiz. Ao entregar-lhe o rol, constatando ele que a maioria desses manuscritos dizia respeito à “CONFRARIA DE SÃO MIGUEL”, que fizesse sobre essa instituição um estudo sistematizado, pois tinha ali matéria para um livro interessante. O assunto estava por desbravar na historiografia portuguesa e eu daria, desse modo, um bom contributo nesse ramo de saber.

Foi o que fiz. Quando lhe entreguei o produto da investigação, depois de o ter lido e avaliado, sublinhou o mérito do trabalho, manteve a ideia do livro, e incentivou-me a publicá-lo, depois de sistematizar melhor a matéria apresentada.

Os colegas que não desistiram da cadeira e que, no princípio do ano, se riram baixinho, aquando da nossa conversa de apresentação, aprenderam que nem eu era um atrevido “chico-esperto” retornado de África, nem o Professor BORGES COELHO era um professor da velha guarda, distante dos seus alunos. Ambos nos afastávamos da “praxis”, velha e relha, típica de instituições hierarquizadas e formais. Ele era um SÁBIO e um PEDAGOGO. Eu um aprendiz de ambas as coisas . Devo-lhe esta referência, nestes meus, quase,  oitenta anos de vida.

Face ao que, com todos os seus incentivos, pus mãos à obra e, como sempre me esforcei para não desiludir os professores e as instituições que me formaram, nem envergonhar os meus pais, familiares e amigos, em 1989, editado pela Câmara Municipal de Castro Verde, dei à estampa o livro “HISTÓRIA DE UMA CONFRARIA, 1677-1855”.




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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.