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sexta, 19 julho 2013 11:51

O ANCIÃO E «A MOLEIRINHA»

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O ANCIÃO E  «A MOLEIRINHA»

Estava eu, no dia 18 do corrente,  à  volta de um prato de sardinhas assadas na brasa, quando se aproximou de mim um ancião, pediu licença pela interrupção, e perguntou-me se eu era aquele senhor que escrevia no jornal. Que lia sempre os meus artigos e tinha notado a  minha ausência, nos últimos tempos. Que sim, senhor, era eu mesmo, gosto em conhecê-lo. Quem é?
Um pouco marreco, voz insegura, notoriamente mouco, olhar vivo e penetrante, sorriso desdentado, estava à minha frente uma carrada de anos em forma de homem muito magro e visivelmente de letras gordas.
Eu queria oferecer-lhe um livro. Sim, senhor, obrigado. E meio assustadiço, colocou-me ao lado do prato das sardinhas um opúsculo com o título «A MOLEIRINHA», capa decorada com uma pequena e tosca figura de barro, saída, seguramente, de um ignoto barrista que molda imagens à proporção da sua imaginação e engenho. Voltou a pedir desculpa pela interrupção e foi sentar-se numa mesa próxima. Ouvi-o pedir o almoço e vi o esforço da empregada para fazer-se ouvir a informá-lo dos pratos do dia.

 Pela minha parte, enquanto as sardinhas iam perdendo a identidade reduzidas à espinha, enquanto os pimentos e os tomates perdiam a cores próprias e nacionais, desaparecendo do prato, congeminava sobre o título do opúsculo e do seu conteúdo. O título remetia-me para tempos idos da literatura portuguesa, outros títulos terminados em "inha", coisas do campo, e este autor, Joaquim Leandro da Silva, de tempos idos era e do campo também, seguramente.  Dei uma espreitadela à ficha técnica. Veio ao mundo em 1922 e arrola no seu currículo mais dois livros: «As Memórias do Quim« e «Ana Rita», «uma espécie de romance«(sic).


MOLEIRINHAO respeito pela velhice (eu nasci em 1939) e o reconhecimento pelo esforço titânico que aquele homem deve ter feito para passar a letra redonda impressa, o seu nome, os seus sonhos e as suas experiências de vida, impeliram-me a ir despedir-me dele, renovar os meus agradecimentos e dizer-lhe que ia ler o seu livro e escrever uma linhas, depois de tudo.
Ele, com a mesma voz insegura, o mesmo olhar penetrante, o mesmo sorriso desdentado, disse-me com toda a serenidade. «Com esta idade não preciso de publicidade. Mas faça o que entender». E acrescentou: «lembra-se daquele poeta principiante que um dia interpelou um grande escritor que estava à sombra de uma árvore e lhe pediu a opinião sobre os seus versos? O escritor estava a lê-los e um passarinho, aliviou-se lá do alto, borrando a poesia. Olhe, amigo, retorquiu o escritor, aquele passarinho, lá em cima, acabou de dar-lhe o parecer que me pediu». Esperou alguns segundos a observar a minha reacção e rematou: «esteja à vontade, esteja à vontade»

.E à vontade estou eu sempre quando me guio pelos ditames da consciência. Prometi que ia ler o «livro» e escrever umas linhas sobre ele. Cá estou a fazê-lo.  Começa com um diálogo em discurso directo, sem qualquer enquadramento no espaço e no tempo. Entramos nele como quem entra num qualquer sítio onde duas pessoas conversam sobre algo que desconhecemos. E assim prossegue estruturalmente até ao fim, ainda que o assunto da conversa mude e mudem os protagonistas. É como se o autor, homem anoso, que presenciou transformações inesperadas no seu percurso da vida,  assumisse o papel do avozinho que quisesse transmitir aos netos a sua mundividência, dar-lhes a conhecer as coisas do seu tempo. Não histórias de encantar, imaginadas, histórias da Carochinha, mas histórias reais vividas por si e pelas comunidades rurais de que ele fazia parte.  Há mesmo um momento do diálogo em que o neto Julinho  pergunta: «ó avozinho, vossemecê estudou medicina?». E a resposta veio pronta: «não, é a experiência da vida. Na altura em que me criei, as pneumonias tratavam-se com cataplasmas de linhaça e mostarda e, se não houvesse, punham-se pensos de água quente. Também se aplicavam ventosas». 

«E o que são ventosas - perguntou a Francisquinha?». «São copinhos de vidro com a boca mais estreita que o fundo. Deitava-se umas gotas de álcool no fundo da ventosa, chegava-se o lume e punha-se sobre a parte dorida e dez minutos depois tirava-se. E também havia sanguessugas, que são uma lesma pequenina, que se conservam dentro de uma jarra de vidro e muda-se a água todos os dias. Aplicam-se em cima da parte dorida, elas começam a morder, chupam o sangue e passados dez minutos, para elas deixarem de morder, deixava-se cair uma gota de vinagre. Elas caíam para o lado, tinha-se cinza peneirada num prato, punham-se as sanguessugas sobre a cinza e elas vomitavam o sangue que tinham ingerido. Depois deitavam-se para uma tijela com água para ficarem lavadas e prontas para serem aplicadas quando fosse preciso. Nas aldeias o médico era o barbeiro, receitava purgantes, para a dor de cabeça receitava rodelas de batatas cruas para pôr na testa. Com a ponta de uma navalha fazia um pequeno corte na veia do braço e deixava escorrer sangue alguns minutos. Era assim o médico da aldeia».

E sem perder-me  no enredo, sem grandes enredos, de «A Moleirinha», se eu desconhecesse a realidade nua e crua descrita por este ancião, este naco de informação chegaria para eu não dar perdido o tempo que gastei a lê-lo. É que nós aprendemos sempre algo com pessoas de outros tempos, seja lidando com elas ao vivo, seja estudando o passado próximo ou distante, através dos registos que nos deixaram, independentemente da sua qualidade formal. Valeu a pena. E não deixei que o passarinho, chilreando lá em cima da árvore, se consolasse a borrar-me a leitura. Fi-la em casa, ontem à tarde, estendido num sofá, a ouvir o Sol Mio de Pavaroti.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.