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domingo, 02 setembro 2018 12:50

CUJÓ - POÇO DA MOIRA - CEMITÉRIO DE CÃES E GATOS

Escrito por 

CUJÓ - GENTE, TERRA E BICHOS

Quem conheceu a vida aldeã tradicional, de economia ligada à agricultura, à pastorícia e ofícios afins, numa luta constante e sofrida pela sobrevivência, antes da acentuada desertificação atualmente tão propagada por interesses políticos em tudo quanto é jornal e televisão, sabe, de fonte limpa, que tais tarefas (quase sempre de produção insuficiente) assentava na trindade GENTE, TERRA E BICHOS.

 

PORRA-1Entre os bichos, deixando agora em paz os que nas laboriosas tarefas ajudavam, contavam-se CÃESGATOS. Ainda hoje, quem se der ao cuidado de mirar paredes e portas das moradias e lojas serranas, nota a existência de “gateiras” abertas numas e noutras. Nas paredes, elas eram abertas ao nível térreo, em forma de retângulo ao alto, e nas portas de madeira inteiriça e meias portas, eram rasgadas na base, em arco redondo (perfeito ou tosco) por forma a que o guardião, felino de raça, pudesse entrar e sair livremente nos domínios domésticos e, qual soldado de infantaria, estar na primeira linha no combate à praga de roedores que, regra geral, infestavam todos espaços e buraquinhos onde lhes cheirasse algo que servisse para dar ao dente.

E o aldeão analfabeto, que nunca leu uma letra sobre a capacidade reprodutiva e multiplicadora dessa espécie de mamífero, sabia muito bem que, onde houvesse um casal de ratos, existia uma fábrica capaz de desafiar a mais sofisticada linha de montagem de qualquer indústria moderna. Tal capacidade multiplicadora só foi ultrapassada modernamente pela indústria de telemóveis. Por isso, casa montada na aldeia, jovens namorados, rapaz e rapariga, saídos da igreja enlaçados pela estola, cumpridas as leis da Santa Madre Igreja, eis um gato a integrar a família e a tornar-se membro dela, mesmo antes de aparecer no lar a primeira criança.

Só que, as leis da natureza ligadas à reprodução, não são exclusivas dos ratos. E todos os animais (mesmo desconhecedores do preceito bíblico “criai-vos e multiplicai-vos”) fazem tudo o que podem para, ciosamente (uns mais do que outros) darem continuidade à espécie por forma a manterem o mundo povoado.

Poço-1E nessa linha de povoamento havia necessidade, por vezes, de equilibrar o número de efetivos domésticos, no que tocava a CÃES e GATOS. Um lar não suportava um exército desses animais, por mais estimáveis que eles fossem. E quando qualquer casal desta espécie se dispunha a acasalar e a parir, crias nascidas às ninhadas, necessário se tornava proceder a uma seleção e condenar à morte as crias rejeitadas, a bem dizer gatinhos e cachorrinhos, recém-nascidos.

Na época não havia associações ditas “defensoras dos animais” e muito menos informação e formas científicas de evitar a reprodução. Já se praticava a “castração” de cavalos e porcos, mas de cães e gatos, nem pensar. De resto, nem era preciso, pois para descartar os efetivos excedentes à seleção feita após cada paridela, lá estava o POÇO DA MOIRA, no RIO CALVO, entre o Moinho da Ponte e o Moinho de Botacos.

Era um poço fundo, ladeado por um fragão na margem direita e por amieiros e cerdeiras que nasciam espontaneamente nas margens do rio. Pego sem grande extensão de curso, camuflado assim entre a vegetação, ninguém sabia desde quando era ali que todo o habitante da aldeia se desfazia dos excedentes caninos e felinos que tivessem o azar de vir ao mundo em tempo aziago.

E acredite quem quiser, fazer isso, não pesava na consciência de quem tal fazia, antes pelo contrário. Afogar aqueles pequenos seres, muitos deles mal saídos dos ventres das mães, de olhos fechados, ipso facto, sem verem o “vale de lágrimas” onde nasceram e teriam de viver, era até um alívio de consciência, no sentido cristão, uma “obra de misericórdia”. Eram bocas que não sentiriam a miséria de alimentação que os esperaria em adultos (aguadilha de louça lavada atirada para uma pia de pedra, sempre lambida que nem chaga de Lázaro), nem ferimento de pedrada atirada a todo o animal ladrão que, coitado, lançado no mundo onde havia “fartura de fome”, (neste aspeto os animais e humanos eram irmãos) tinha de fazer pela vida, assaltando capoeiras e estendais de fumeiro ou queijarias desprotegidas. Pelo que, o ato de afogar cachorrinhos e gatinhos, naquele estado cego de recém-nascidos, atendendo aos naturais, afetuosos e culturais elos que ligavam a trindade GENTE, TERRA E BICHOS, não revestia. em si, qualquer gesto de maldade, mas até algum cerimonial de jogo e de festa, quando de tal tarefa eram incumbidas as crianças. E uma cruz gravada no prolongamento fragão donde se atiravam à água as vítimas, empresta ao ato um certo sentido cristão. De resto, não faltam na História registos de sítios onde tiveram lugar “rituais da morte” ligados a humanos e s animais. Este é apenas mais um, só agora historiado.

O SUSTO

Poço-2Eu bem me lembro daquela vez que integrei a equipa encarregada dessa caridosa missão. Andaria pelos meus cinco ou seis anos de idade. Acompanhava a minha irmã Maria dos Prazeres, mais velha do que eu dois ou três anos. Ela levava uma cestinha muito forradinha, tapada com uma toalhinha e, lá dentro, muito aconchegadinhos, como se fossem num ninho, iam as vítimas inocentinhas. E tão aconchegadinhas e quentinhas iam que nem ganiam. E, nós, tão inocentes quanto elas, não me lembro se ufanos, se pesarosos, mas seguramente ansiosos, chegámos ao POÇO DA MOIRA.

Tomámos lugar no fragão e, tal como hoje não há criança que não goste de atirar pedras à água, disputava-se a vez: «agora atiras tu, agora atiro eu».

E estávamos nós neste “JOGO» quando, lá do alto, vinda não sei de onde, chegou inesperadamente até aos meus ouvidos uma voz tonitruante: “ah, seus marotos, que vão todos para a cadeia”.

Não foi preciso mais. Vinda do alto, voz de homem era, mas homem eu não vi nenhum. Agarrei nas pernas e para que vos quero eu. Cinco ou seis anos de idade e de inocência, face aquela ameaça vinda do ar, pelo ar fizeram o trajeto de retorno a casa. Aí chegado fui meter-me debaixo de uma cama que os meus pais tinham na chamada “casa da máquina” por ser nela que a minha mãe costurava numa Singer, ora remendando, ora fazendo novas peças de vestuário para a ninhada de filhos que tinha em casa: sete ao todo, quatro rapazes e três raparigas. Meti-me lá bem no fundo, onde não chegava ponta de luz, cântico de galo, nem medonha voz de homem.

A minha irmã, também ela criança, que presenciara tudo e me vira dar “às de vila diogo”, sem tugir nem mugir, julgou, naturalmente, que eu estaria em casa. Não se enganava. Eu em casa estava, mas em lugar onde não era visto, nem achado. Desaparecido assim, sabida a estória, toda a família e conhecidos se puseram à minha procura. Farejaram cantos e recantos da aldeia e moradias. Quantas horas? Ninguém sabe. Mas, depois de tanto procurarem, tão assustados quanto eu, lá fui encontrado debaixo da cama e dali fui “arrancado a ferros”..

Voltei ao mundo, mas sem nunca esquecer o susto que aquele patife adulto resolveu pregar às inocentes crianças ameaçando-as com a cadeia, por estarem a fazer, naquele poço, exatamente o que fazia toda a aldeia adulta.

Foi-me explicado depois que a voz que todos ouvimos era do tio Simplício Camelo que, por mero acaso, se encontrava em cima de uma cerdeira nascida na margem esquerda do rio. Era hábito, adultos e crianças, subirem para tais árvores em tempo próprio, e deixá-las vindimadas que nem bandos de estorninhos. Ora, estando ele lá escarrapachado, face à nossa aproximação denunciada pelo característico alarido de crianças em magote, quedou-se da tarefa e apreciou em silêncio todo o nosso jogo do “atiras tu, atiro eu”. E, no momento asado, lançou a ameaça.

CruzO susto foi de tal tamanho que nunca me esqueci do episódio. Mas, sempre que ele me vinha à lembrança (ele foi chamado à colação, em Cujó, neste ano de 2018, pela minha irmã, Prazeres, durante uma sardinhada) sempre me interpelei se o meu comportamento inocente se deveu ao medo de ir para a cadeia, ou se foi por aquela voz vir, inesperadamente, do céu. Em boa verdade, a estes anos de distância e de conhecimento, creio que foram as duas coisas. Nenhum desses sítios é para mim apelativo.

E do inferno estou, seguramente, eu livre. Pois ciente de que Tribunal do Juízo Final é uma conceção humana e que nesse Tribunal aportam os Códigos Penais vigentes nos tribunais terrenos, estou certo da sentença proferida pelo Supremo Juiz. Assim: «atendendo a que, à altura dos factos, o réu era menor e, portanto inimputável, e bem assim, que o ato praticado estava em conformidade com os «usos e costumes», declaro-o inocente e pode ir à sua vida».

 

CONCLUSÃO

 

COMENTÁRIOSEste texto foi escrito tão só porque tal foi pedido num dos COMENTÁRIOS que foram feitos ao vídeo que alojei no Youtube relativo a um episódio que teve lugar no POÇO DA MOIRA, contado pelo meu cunhado João Duarte Bernardo.

Sãos os COMENTÁRIOS que anexo «captados do ecran» tal qual ali foram postados. Isto para pôr de alerta todos aqueles que, fazendo uso do FACEBOOK pensam que, põem e dispõem desse espaço, segundo a sua real gana. Nem tudo se APAGA. Há sempre algo que fica. E o historiador atento, salvaguarda os documentos, pois não falta por aí quem jogue com um pau de dois bicos. Colocam o «GOSTO» num determinado «post», marcando a sua posição de assentimento face ao tema em questão e, logo depois, viram o «bico ao prego», como se nada fosse. Cuidado, pois.. amigos.

 

 

NOTA: clicar no link e ver vídeo conexo.


https://youtu.be/t7NkS1LTtGI
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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.