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sexta, 21 abril 2017 09:22

FOLAR DA PÁSCOA

Escrito por 

HISTÓRIA VIVA

É o mês de Maio, é o tempo da vessada. A charrua, relha afiada, aiveca oleada, vai ao fim da leira e retorna, virando leiva sobre leiva. Aquele pedaço de terra negra é a folha onde os camponeses, séculos, anos e meses, sem escolha, escrevem, mil vezes, a sua história em escrita bustrofedon. Ele é o lavrar, ele o cavar, ele é o gradear a terra chã de regadio. Saco de serapilheira ao tiracolo, o lavrador mete a mão dentro e, com gesto solto e longo, espalha pelo terreno lavrado o milho ensacado. Grade passada e repassada, está feita a vessada. Um espicho, em forma de bengala aguçada, acaba a missão e não há grão que se mostre à superfície da terra negra que não seja afundado, antes de ser levado no papo do melro, do gaio e outra passarada que, por sua vez, está tão treinada nestas tarefas como o camponês.

 milho1Depois é esperar que nasça e que cresça. Sucede-se a arrelenta, que o mesmo é dizer o desbaste de modo a que cada graeiro não incomode o vizinho e o deixe desenvolver e crescer sadio. Ele são as águas a deslizarem desde o Portinho até à Fontanheira, até ao Gestal, até ao Lamaceiro e toda aquela área é uma tela de cor vária. Ele é a rega, diurna ou nocturna, conforme a vez de cada morador da aldeia e, com candeia ou sem candeia, pés metidos na terra, talhadoiro aqui, talhadoiro ali, ninguém receia ir matar a sede a cada caneiro a qualquer hora. Ele é a espiga a crescer e a ostentar, na extremidade, os bigodes louros e compridos que fazem inveja aos bigodes de D. Carlos e outras Excelências Portuguesas da Monarquia e da República, no tempo em que se usava barba e bigode e no tempo em que, por regra, homens raros tinham barba e vergonha na cara. O artista das cores foi mudando a tela com a passagem do tempo.

Ele é o descruitar cada graeiro, primeiro, e depois o cortar das canas acima da espiga. Ele é aproveitar tudo isso para forragens, pois, no Inverno, os animais agradecem o petisco. Ele é o libertar da maçaroca de empecilhos e sombras, deixar que o sol caia directo sobre ela e a amadureça. O verde dá lugar ao castanho e ao amarelo. Ele é o aparecimento de espantalhos no meio dos milheirais mais afastados da povoação onde a fauna alada, para quem tudo é baldio, é dona e senhora de todo o sementio. Ele é os gaios a ignorarem essas esculturas artesanais vestidas com roupas velhas, a não ligaram ao «tam-tam-tam das caravelas e a fazerem poleiro em cada espiga, bica-que-bica, a despirem-na, ansiosos de saberem o estado da maturação de cada grão e a comê-lo que é um regalo. Ele é a mão dos catraios pastores a imitá-los e a meterem a unha em cada grão a testarem se estão no ponto para assar. Se botam leite, é ponto assente, está na hora. Um pequeno empurrão para baixo, folhelho fora, e a espiga não tarda a ser assada, levada à boca que nem realejo em dia de romaria, trincada e a barriga aconchegada com milho assado.

Espiga-RedO milho que semeado, ceifado, desfolhado, encanastrado, debulhado, secado, moído, em farinha transformado, amassado, fermentado, tendido e cozido dará broa, saída do formo, algumas delas com côdeas duras que nem corno.A broa de milho era o alimento diário do camponês. A toda a hora. O pão de trigo, nestas terras da serra e para estas gentes, era coisa rara. Só de Páscoa em Páscoa e quem o sabe explicar? fazia parte do folar que os padrinhos davam aos afilhados: um bolo de trigo e uma laranja, isto até chegarem à vida adulta. Daí que, já namorados, rebanhos na serra irmanados, se juntassem grupos de rapazes e raparigas cantando e atirando a laranja ao ar. Nesse dia, a broa ficava no açafate. O folar subia à serra e em jogo aberto ou jogo recatado, namorada e namorado, no trajar e no comer, distinguiam esse dia dos restantes dias.E foi assim que um dia, capucha dobrada sobre uns sargaços aveludados a servirem de assento, lado a lado, um par de namorados, tão aconchegados quanto o permitia a moral ditada pela comunidade, deu liberdade à atracção natural que, deste o Paraíso Terreal onde esteve Adão e Eva, existe entre o macho e a fêmea. E, por entre carícias, beijos e afagos, ele ia perguntado, louco de desejos: já posso? resposta pronta dela: ainda não, ainda é cedo. Mais afagos, mais carícias, mais beijos, dedos metidos nas tranças enroladas na nuca dela à moda de rodilha e, a medo, insistia ele: já posso? ainda não, ainda é cedo, respondia ela. E, desejoso, tantas vezes ele repetiu que ela, por fim, anuiu; sim já podes. E eles que, naquele momento, estavam naquela posição dela ver o céu e ele ver o céu nos olhos dela, ele levantou-se, foi buscar a saqueta de trapos esganada por um nagalho, usada na serra para levar os alimentos, e, depois de tantos afagos e carinhos, te tantas carícias e beijinhos, retirou de lá o folar dado pelos padrinhos e, sem mácula, passaram aquele dia de Páscoa. Nesse dia, se bem digo, comeram trigo e nenhum deles rilhou a broa saída do forno, com a côdea rija que nem corno.

Posto no Facebook em 21 de abril de 2014 e alojado hoje mesmo neste meu site.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.