Trilhos Serranos

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sexta, 02 dezembro 2016 13:56

ESTRADA NACIONAL Nº 2 (NONO APONTAMENTO)

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A ECONOMIA, OS AFECTOS, AS PESSOAS E OS  POVOS

Para este NONO APONTAMENTO sobre a ESTRADA NACIONAL Nº 2  (a futura ROTA TURÍSTICA NACIONAL, ou como lhe queiram chamarescolhi a minha ida para Viseu, em 1958, com 18 anos de idade. Já aludi à minha ida a Lamego, dois anos antes, na companhia de um burro com umas cangalhas em cima, ESTRADA NACIONAL N. 2, abaixo eacima, buscar 40 litros de TRATOL para alimentar o motor LISTER que fazia girar a moagem do meu pai. 

Foi isso. Na altura, a relação do Estado com o cidadão limitava-se a três coisas simples: a) o cidadão era obrigado a frequentar a Escola Primária; b) obrigado a cumprir o serviço militar; c) obrigado a pagar os impostos profissionais e a décima dos bens rústicos urbanos que possuisseFeito isso o cidadão que se amanhasse. Os seus deveres de cidadania estavam cumpridos e o Estado liberto das contrapartidas na assistência, no saneamento básico, na eletrificação, nas rodovias etc. etc. Se era preciso um fontanário público as Juntas de Freguesia que coutassem parte dos baldios e que fizessem dinheiro com a arrematação da torga para carvão. E ó-la-ri-ló-lé! 

Num contexto desses, onde se não saía da cepa torta, feita a quarta classe, faltava-me cumprir o serviço militar para estar quite com o Estado. Havia que fazê-lo quanto antes e logo que a idade mo permitisse, que era aos 18 anos de idade. E por entender que, em vez de camponês e de almocreve podia dar o meu contributo à mercancia das letras (mesmo que me ficasse por aprendiz) resolvi abandonar a laboriosa vida camponesa e assentar praça como voluntário no Regimento de Infantaria 14, onde me foi atribuído o número NOVE

A partir daí perdi o nome próprio e, para tudo e para nada, era sempre o número NOVE que respondia à chamada para o que desse e viesse, intra e extra muros do quartel. Só retomei o nome de batismo quando despi a farda, tal como todos os camaradas de camarata. Ainda hoje, ao ver as fotografias que tirámos em grupo, eu os identifico pelo número, pois eles, tal como eu, perdemos a identidade no cumprimento de um ato de cidadania. Ao sair na Porta de Armas do Quartel, munido da respetiva licença de saída, não saía Abílio, saía simplesmente o soldado raso número NOVE.

E foi esse soldado raso número NOVE que, com 18 anos de idade, se aventurou DUAS vezes a calcorrear a pé firme a ESTRADA NACIONAL N. 2, na distância que separa Viseu de Castro Daire e o restante percurso de caminho e atalhos que da vila do "Crasto" levavam a Cujó, onde eu tinha a família e continuava a ser conhecido por ABÍLIO.

A primeira vez fiz isso na companhia de um camarada natural de SOUTO DE ALVA. Para ele, nem número, nem nome. Era o rancheiro e chegava. Por iniciativa sua as botas da tropa que nos entregaram à entrada e éramos obrigados a devolver à saída, com sola ou sem ela, aguentaram a caminhada sem queixume. E nós, com os pés metidos melas, chegámos ao destino que nem gatos pingados. Cerca do Rio de Mel, desencadeou-se tal trovoada e chuvada que não nos deixou seca uma polegada do corpo. Pernoitei na casa dele, em Souto de Alva, com a roupa pendurava nos varões do caniço da cozinha, onde era costume secar-se o fumeiro. Os pais já estavam deitados e a lareira apagada de fresco. Estoirados de fadiga fomos dormir. No dia seguinte, escorrida a roupa, vesti-a ainda molhada e retomei a marcha. Destino: Castro Daire, Fareja, Farejinhas, Cujó.  Aquilo era um saltinho.

Soalheira-Fonte - REDZNa segunda vez, o número NOVE, impelido pelas saudades do Abílio,  tomou a iniciativa e meteu-se a caminho sozinho. Tinha 18 anos e o que eram cerca de 50 quilómetros de faixa de macadame para essa idade? Era só dar corda às botas e toca a andar! Mas há dias de sorte. Ali pelo sítio do Campo, vindo de Viseu com destino a Castro Daire, apareceu-me pelas costas um automóvel. Fiz sinal de querer boleia. O condutor parou e perguntou-me o destino. Respondi: «Castro Daire». Retorquiu: «Está com sorte, entre!». Abriu a porta, mas não abriu mais boca. Eu, mais por acanho do que por educação, imitei-o. Não trocámos palavra em todo o percurso.

Era um homem dos seus 50 ou 60 anos. De chapéu metido na cabeça, olhos na estrada, circunspecto, ensimesmado, nem um trejeito de rosto, nem um olhar para o pendura. E eu, de relance, via nele o perfil pálido de um busto histórico de carne e osso. Há bustos e perfis esculpidos em mármore que transmitem mais vida e comunicação do que ele. SERRA - REDZ

Chegados à vila de Castro Daire, parou junto ao coreto para eu sair. Muito acabrunhado, perguntei: «o senhor quer um cafezinho?» Resposta dele, pronta e seca: «vá à sua vida!».

E fui. Mas nunca me esqueci do facto, nem daquele homem tão enigmático, de chapéu e poucas falas. Praticar um gesto humano e simpático, um gesto digno de registo e guardado para sempre no baú do meu crescimento de relação com o mundo e com as pessoas, dar boleia a um soldado que encontrou na estrada sem perguntar sequer quem era, nem para onde ia, é uma atitude deveras singular e de respeito, ainda que intrigante. Pela minha parte, procurei, mais tarde, indagar quem teria sido aquele  bom  samaritano  e, regressado de África, o mais que consegui apurar foram dois nomes: de chapéu e a proceder assim, só podia ter sido o Dr. Maneca ou o Senhor Artur Leitão. Ambos tinham carro, na altura. E ambos moravam para os lados da Igreja Matriz, direção que o carro tomou, mal me apeei.

onda gozo-vila pouca -REDZE aqui chegado, julgo que justificado fica o subtítulo que coloquei nestes apontamentos: "A ECONOMIA, OS AFECTOS, AS PESSOAS E OS POVOS".

Com a miséria do pré de soldado raso, sem dinheiro no bolso para pagar o bilhete da camioneta, como podia eu esquecer um gesto humano destes, sobretudo se na minha memória se mantinha arquivada e viva a fadiga, a trovoada e a molhadela da aventura anterior?

Muitos anos depois  rodei  na ESTRADA NACIONAL N. 2, já asfaltada,  em carro próprio, com a FAMÍLIA dentro. E nessa estrada continuo a rodar ainda, de carro ou de mota (agora sozinho), quando necessito ou quando me apraz. Castro Daire/Viseu ou Castro Daire/Lamego/ Régua/Santa Marta e vice-versa. As fotos que ilustram este  apontamento  assim o atestam. E atestam também a minha ralação afetiva e utilitária com a via rodoviária que está em vias de tornar-se uma ROTA TURÍSTICA NACIONAL (ou como lhe queiram chamara fim devolver um pouco de vida a este Portugal Periférico que persiste em manter-se de pé. Portugal cujos residentes resistentes chamaram a si, com toda a legitimidade, os cognomes de conquistadores povoadores atribuídos aos nossos primeiros reis. Residentes que não aceitam ser riscados da  HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE PORTUGAL, com turismo ou sem ele.

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.