Trilhos Serranos

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quarta, 16 novembro 2016 15:45

ESTRADA NACIONAL Nº 2 (QUINTO APONTAMENTO)

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«Quem tem boca vai a Roma!». «Todos os caminhos vão dar a Roma!» . 

Aos setenta e sete anos de idade (bem perto de usar a bengala) recordo muito bem estas duas  expressões que os adultos me diziam a mim, e aos meninos da minha idade, para incutir-nos confiança e, sem medo, calcorrearmos os carreiros, caminhos e veredas que rasgavam os montes e as serras onde nós íamos guardar gados. Ali, em plena liberdade, sem os cuidados paternalistas e vigilantes dos nossos pais a fazermos as mais incríveis e arriscadas brincadeiras.

 

E o que era para nós a queda do balouço feito, a jeito, numa vergôntea de carvalho, os joelhos esfolados no trambolhão durante uma corrida ou mesmo o golpe num dedo feito pelo canivete cujo fio de corte se desviou do brinquedo de madeira que fazíamos, a saber, uma fisga roubada à pernada de uma giesta, ou um arcabuz de sabugueiro com chave feita de piorneira? Tantas, em plena liberdade de risco, de criatividade e de aventura. Complemento da aprendizagem da  tabuada e saber de cor e salteado dos nomes dos rios, serras e reis de Portugal,  ensinados na escola.

Mas para ara mim Roma, nessa idade, era Cujó, a minha terra natal, pois ali confluíam e dali saíam todos esses carreiros, caminhos e veredas em redor. Só muito mais tarde vim a entender o significado histórico dessas expressões, que o mesmo é dizer, só quando os estudos me levaram a saber que os romanos, a partir da Itália, dispostos a avistarem territórios e povos que fugiam ao alcance da sua vista, resolveram meter-se a caminho e conquistar toda a área territorial que existia à volta do mar Mediterrâneo. Não foi tarefa fácil. Primeiro, porque nessa época os Cartagineses, igualmente conquistadores, almejavam a posse dos mesmos territórios e riquezas naturais. Segundo, porque os povos peninsulares, entre os quais os Lusitanos, se mostraram um osso duro de roer aos dentes afiados e brancos dos conquistadores latinos. Os Cartagineses contavam com dois cabos de guerra, os Barcas, Amílcar e Aníbal, este último considerado um dos grandes estrategos militares da Antiguidade. Uma das suas façanhas, ainda hoje enigmática para historiadores e curiosos, foi incorporar elefantes no seu exército e, transpondo os Alpes, coisa impensável para os romanos, atacá-los por essa via. Os Lusitanos, mais pastores do que guerreiros, conhecedores de serras e vales, tinham em Viriato o líder capaz de dificultar a prossecução dos objetivos das legiões romanas, mais preparadas para lutarem em terrenos planos que em solos de encostas e ravinas revestidos de matagais e penedias. 

No fim de tudo ganharam os romanos e estes dominando todos territórios em torno do Mediterrâneo chamaram-lhe «mare nostrum», via marítima por onde chegavam a Roma impostos em dinheiro, em géneros e escravos idos de todas as bandas do império. 

Ora, governar e administrar tão amplos domínios impunha a construção de uma rede assinalável de estradas,  por forma a que os éditos imperiais e leis senatoriais chegassem rapidamente aos governadores de província e as legiões pudessem acorrer com a rapidez aos pontos de rebelião ou insubmissão. Não houve monte e serra que não fosse rasgado, nem rio ou riacho sem ponte de madeira, pontelo monolítico ou ponte de pedra corcunda de arco redondo. Uma delas foi a Pons Petrina, no rio Paiva, aos pés de Castro Daire.

E.Romana7Consolidado o império, efetivamente «todos os caminhos iam dar a Roma» e lá eram recebidos em triunfo os generais e legiões regressadas com os seus troféus, em fins da campanha. Isto até à queda da parte ocidental do império, em 476, face à invasão dos bárbaros.

Só em adulto, como disse,  vim a entender, por via dos livros, o significado das expressões ligadas à romanização acima referidas etambém, só em adulto percebi a razão por que me ensinaram a aplicar a urina, como remédio imediato, em golpe de seitoira, navalha ou esfoladela na pele, resultante de brincadeira mal sucedida. Tida por remédio que nunca estava fora de prazo  (o que arde cura e o que aperta segura), sempre disponível no laboratório e destilador humanos (de adultos e crianças),  foi com naturalidade campesina e serrana que tomei conhecimento da preferência dos romanos conquistadores pela urina ibérica que, metida em ânforas, qual vinho do Porto do século XXI, rumava a Roma onde era vendida para branquear os dentes e tirar nódoas da togas dos senadores e outros dignitários que cuidavam da sua apresentação pública. A tais hábitos não escapavam as bocas dos políticos,  dos juristas, dos poetas e escritores que nos legaram os códigos de leis, a literatura, a poesia, a língua que, como dizia Camões, com pouca corrupção (se) crê que é latina.

E eu, que fui professor da língua mãe, que ensinei Gramática aos meus alunos, que penso e escrevo para além da GRAMÁTICA que aprendi na ESCOLA PRIMÁRIA, recusar-me-ei a travar diálogo com as  consoantes  mudas e, nos poucos anos que me restam como ser falante e escrevente,  falarei e escreverei  consoante o evoluir da ferramenta usada na comunicação entre milhões de cidadãos no mundo, sem complexos de puridade e primazia. E interrogo-me, a propósito, se o azedume revelado por todos os que se têm envolvido na polémica sobre o ACORDO ORTOGRÁFICO feito com os países lusófonos, tem algo a ver com esse velho paladar ibérico, aquele que branqueava os dentes e tirava as nódoas da togas dos tribunos e dos escribas. Isso e tudo o mais que nos ficou da romanização, seja da cultura, da administração ou das infraestruturas rodoviárias lajeadas, algumas das quais, chegaram intactas ao nosso século XX. 

Foi o caso do troço da estrada romana  (ver foto acima) que, contornando a vila de Castro Daire, pelo lado poente em direção à Ponte Pedrinha, manteve as lajes originais sobre as quais rodaram as bigas, quadrigas e demais carripanas puxadas a cavalos romanos sem ferraduras. E, depois deles, o carro de vacas visigótico , com os seus trilhos e sovinas de ferro (ainda hoje protagonistas principais na «Festa das Colheitas» que, de há uns anos a esta parte, se vem realizando na vila de Castro Daire, no mês outubro)  para não falar nos cavalos lusitanos e árabes que, na Idade Média, esses sim, já calçados com ferraduras e os cavaleiros apoiados no estribo da sela, possuíam dois adereços ignorados pelos romanos.

Sobre esse troço de estrada (desfigurado pela canalização de saneamento básico que sob ele se esconde, atualmente) fiz um vídeo em 2008 que alojei no Youtube em 2011. No fim deste texto anexo o seu link para melhor ilustração do que digo. 

Essa estrada serviu durante séculos de ligação rodoviária e pedestre entre Lamego e Viseu. Mas,  em tempos de Monarquia, veio a ser reformada pela Estrada Real que, feita por etapas, viria  a tomar o nome ESTRADA NACIONAL Nº 2, aquela que, rasgando Portugal de CHAVES a FARO, unindo povos e regiões, parece estar prestes a ressuscitar com alma de ROTA TURÍSTICA  depois morta pelas vias rápidas e autoestradas trazidas pela modernidade e velocidade, ambas cegas, surdas e mudas à realidade e desenvolvimento locais. 

ABÍLIO-DYANE-RedzNão vou fazer a história dessa estrada, mas tão só lembrar  (tal como fiz no vídeo, em 2011, cujo link se junta ao da estrada romana no fim deste texto) o cansaço e os afetos que me ligam aos quinhentos quilómetros que separam Castro Verde de Castro Daire e vice-versa, distância atravessada por mim durante anos ao volante de uma carrinha Citroen Dyane, com a família dentro. Aquela do anúncio:  «gasolina não precisam e oficina nem pensar». E que fiável era ela! Saindo da Alentejo no mês de agosto, carregada com toda a tralha que uma família necessita em tempo de férias, acrescida das fraldas, leite, biberões e tudo o mais que se liga aos carinhos e atenções devidas a bebés indefesos e amados. Naquelas viagens anuais, uma das paragens obrigatórias era naquela fonte pública, sita no Buçaco, na subida das curvas do Luso. Ao lado dela e da minha «Dyane»  estacionavam  Mercedes e outros carros semelhantes de alta cilindrada com os radiadores a fumegar. Os condutores aproveitavam para meter água fresca. Na Dyane nem pensar. O radiador era de refrigeração a óleo e, por isso, nem uma gota de suor. Desentorpecidas as pernas, refrescadas as gargantas com água do Luso, ala que se fazia tarde. Cujó era o destino. E «rodinhas» a pedirem estrada tinha eu. Que saudades!

a)Link" CASTRODAIREESTRADAROMANA"  https://youtu.be/mp8hw9rFtlk

b)Link  "FAREJA-BENGALAS"  https://youtu.be/yxPv3aI3pME

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.