NÓS E A NATUREZA
No texto que aqui deixei, há tempos, sobre o meu NASCIMENTO, aludi às MEZINHAS usadas na época para facilitarem o PARTO, entre as quais o CHÁ DO CORNELHO. A ele retorno, acrescentando, lá mais para diante o uso que nós, pastorinhos de escola, fazíamos da DEDALEIRA, planta conhecida também por CAÇAPEIRO. Pretendo, ao fim e ao cabo, vincar a relação estreita que o camponês era forçado a ter com a NATUREZA e dela tirar proventos, proveito e conhecimento.
PRIMEIRA PARTE
O camponês, sem LETRAS, mas, seguramente com muitas TRETAS, cedo aprendeu-a-aprender com a NATUREZA e a fazer uso de saberes antigos, vindos de ignotos tempos, mas postos em prática nos momentos inesperados e críticos de maleitas, andaços e outras doenças passageiras ou prolongadas, até mesmo nos muitos «PARTOS» de animais e crianças. E, no campo, nesses tempos idos, quer em pulgas, quer em piolhos, bem como no assinalável número de filhos, bem pode dizer que os pobres eram ricos. É que, se uma criança no lar era mais uma boca a alimentar, era também, e desde tenra idade, mais um membro disponível para as tarefas adstritas à agricultura e pastorícia.
No que toca ao uso do cornelho e a sua «apanha» por crianças, era bem conhecida por boticários e farmacêuticos que compravam esse fungo azul-negro, distinto do grão de centeio e trigo, que se consumia nas aldeias para «chás» diversos e era também utilizado não sei em que laboratórios urbanos para a manipulação de fármacos receitados por médicos e barbeiros.
Sei é que, muitas vezes, jovem ainda, passeando os olhos pelas douradas espigas ondulantes das searas, fixava a vista naqueles pontinhos negros e, devagar, devagarinho, para não estragar a colheita, ia apanhá-los e metê-los numa caixa de fósforos vazia ou num saquinho semelhante a um bisalho de pedraria, tal era o seu valor comercial.
Dali saíam para a mão do primeiro boticário (ou alguém ao seu serviço) que viesse à aldeia e comigo (ou com os meus pais) negociasse o preço. Pois. É que nesses tempos afastados, nós, crianças, não tínhamos tios, tias, avós e pais que nos dessem uma “mesada”, ou simplesmente uns centavos para gastarmos em brinquedos ou estravagâncias infantis. Tínhamos de fazer pela vidinha se quiséssemos ouvir o tilintar das moedas v.g. dinheiro em “metal sonante” nos bolsos das calças, do casaco ou do colete de burel, tudo de burel, no inverno e de cotim no verão.
Mais tarde os estudos vieram ensinar-me que esse “fungo preto”, direito ou recurvado em forma de vírgula, também conhecido por “esporão-do-centeio” “grão-de-corvo” e “dente-de-cão” servia para dele se extraírem vários alcaloides e substâncias medicinais, com carga alucinogénia nomeadamente LSD e quejandos.
E, ainda através dos estudos, vim a saber também que uma cientista, intrigada com aparecimento exagerado de LOBISOMENS na IDADE MÉDIA, associando os anos de invernias prolongadas à alta percentagem de CORNELHO nos cereais mais cultivados - o centeio e o trigo - concluiu, por experiências laboratoriais, que o PÃO, feito com a farinha dessa produção, reunia todas as condições para levar os seus consumidores e terem alucinações e a “verem” os animais - meio homem, meio lobo – essa figura que, tempos fora, se tornou lendária na cultura europeia e preencheu serões inteiros nas narrativas orais de avós para netos. Eu ainda sou desse tempo. Um privilegiado.
SEGUNDA PARTE
E pelos tempos fora, sem eu saber ainda (isso só me foi contado em idade adulta) que o “chá de cornelho”, o chá dos três adubos “azeite, unto e manteiga de vaca”, me ajudaram a vir ao mundo, o certo é que, todos nós pastorinhos-escolares, manhã cedo, antecipando-nos às diligentes abelhas, saboreávamos as gotas de orvalho que descansadamente se aninhavam e dormiam no ventre da DEDALEIRA, planta conhecida também por CAÇAPEIRO.
Conhecedores dos sítios onde elas abundavam, agarrávamos num cacho e enquanto nele houvesse um dedal não parávamos até fazermos a vindima completa. Só ficavam as chupetas que ainda estavam fechadas, em botão. As outras, fosse a chupá-las, fosse a estoirá-las na palma da mão, a competir uns com os outros, desapareciam enquanto o diabo esfregava um olho.
Depois, descalços e ligeiros, saímos montes arriba, a pastorear os gados, sempre a assobiar, felizes e contentes. A nossa inocência tinha o tamanho da nossa ignorância. Não fazíamos a menor ideia de que nessa nossa brincadeira e consumo dessa guloseima matinal tínhamos manipulado uma planta opiácea, chupado e estoirando os seus deliciosos e purpurinos dedais. Ríamos, cantávamos, dançávamos e assobiávamos, sabe-se lá se devido à nossa natural jovialidade de crianças livres do controlo paterno, ou se drogados por força da guloseima que tanto apreciávamos pela madrugada naqueles montes e vales.
NOTA: E não foi sem alguns laivos de gozo, ironia e humor que, a preceito, fiz o vídeo cujo link anexo. Ora façam o favor de ver.
DEDALEIRA