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quarta, 10 novembro 2021 13:29

O CORNELHO E A DEDALEIRA

Escrito por 

NÓS E A NATUREZA

No texto que aqui deixei, há tempos,  sobre o meu NASCIMENTO, aludi às MEZINHAS usadas na época para facilitarem o PARTO, entre as quais o CHÁ DO CORNELHO. A ele retorno, acrescentando, lá mais para diante o uso que nós, pastorinhos de escola, fazíamos da DEDALEIRA, planta conhecida também  por CAÇAPEIRO.  Pretendo, ao fim e ao cabo, vincar a relação estreita que o camponês era forçado a ter com a NATUREZA e dela tirar proventos, proveito e conhecimento.

 

PRIMEIRA PARTE

CORNELHO-1O camponês, sem LETRAS, mas, seguramente com muitas TRETAS, cedo aprendeu-a-aprender com a NATUREZA e a fazer uso de saberes antigos, vindos de ignotos tempos, mas postos em prática nos momentos inesperados e críticos de maleitas, andaços e outras doenças passageiras ou prolongadas, até mesmo nos muitos «PARTOS» de animais e crianças. E, no campo, nesses tempos idos, quer em  pulgas, quer em  piolhos, bem como no assinalável número de filhos, bem pode dizer que os pobres eram ricos. É que, se uma criança no lar era mais uma boca a alimentar, era também, e desde tenra idade, mais um membro disponível para as tarefas adstritas à agricultura e pastorícia.    

No que toca ao uso do cornelho e a sua «apanha» por crianças, era bem conhecida por boticários e farmacêuticos que compravam esse fungo azul-negro, distinto do grão de centeio e trigo, que se consumia nas aldeias para «chás» diversos e era também utilizado não sei em que laboratórios urbanos para a manipulação de fármacos receitados por médicos e barbeiros.

Sei é que, muitas vezes, jovem ainda, passeando os olhos pelas douradas espigas ondulantes das searas, fixava a vista naqueles pontinhos negros e, devagar, devagarinho, para não estragar a colheita, ia apanhá-los e metê-los numa caixa de fósforos vazia ou num saquinho semelhante a um bisalho de pedraria, tal era o seu valor comercial.

Seara - paivoDali saíam para a mão do primeiro boticário (ou alguém ao seu serviço) que viesse à aldeia e comigo (ou com os meus pais)  negociasse o preço. Pois. É que nesses tempos afastados, nós, crianças, não tínhamos tios, tias, avós e pais que nos dessem uma “mesada”, ou simplesmente uns centavos para gastarmos em brinquedos ou estravagâncias infantis. Tínhamos de fazer pela vidinha se quiséssemos ouvir o tilintar das moedas v.g. dinheiro em “metal sonante” nos bolsos das calças, do casaco ou do colete de burel, tudo de burel, no inverno e de cotim no verão.

Mais tarde os estudos vieram ensinar-me que esse “fungo preto”, direito ou recurvado em forma de vírgula também conhecido por “esporão-do-centeio” “grão-de-corvo” e “dente-de-cão” servia para dele se extraírem vários alcaloides e substâncias medicinais, com carga alucinogénia nomeadamente LSD e quejandos.

E, ainda através dos estudos, vim a saber também que uma cientista, intrigada com aparecimento exagerado de LOBISOMENS na IDADE MÉDIA, associando os anos de invernias prolongadas à alta percentagem de CORNELHO nos cereais mais cultivados - o centeio e o trigo - concluiu, por experiências laboratoriais, que o PÃO, feito com a farinha dessa produção, reunia todas as condições para levar os seus consumidores e terem alucinações e a “verem” os animais - meio homem, meio lobo – essa  figura que, tempos fora,  se tornou lendária na cultura europeia  e preencheu serões inteiros nas narrativas orais de avós para netos. Eu ainda sou desse tempo. Um privilegiado.

SEGUNDA PARTE

DEDALEIRA-1E pelos tempos fora, sem eu saber ainda (isso só me foi contado em idade adulta) que o “chá de cornelho”, o chá dos três adubos “azeite, unto e manteiga de vaca”, me ajudaram a vir ao mundo, o certo é que, todos nós pastorinhos-escolares, manhã cedo, antecipando-nos às diligentes abelhas, saboreávamos as gotas de orvalho que descansadamente se aninhavam e dormiam no ventre da DEDALEIRA, planta conhecida também por CAÇAPEIRO.

Conhecedores dos sítios onde elas abundavam, agarrávamos num cacho e enquanto nele houvesse um dedal não parávamos até fazermos a vindima completa. Só ficavam as chupetas que ainda estavam fechadas, em botão. As outras, fosse a chupá-las, fosse a estoirá-las na palma da mão, a competir uns com os outros, desapareciam enquanto o diabo esfregava um olho.

DEDALEIRA-3Depois, descalços e ligeiros, saímos montes arriba, a pastorear os gados, sempre a assobiar, felizes e contentes. A nossa inocência tinha o tamanho da nossa ignorância. Não fazíamos a menor ideia de que nessa nossa brincadeira e consumo dessa guloseima matinal tínhamos manipulado uma planta opiácea, chupado e estoirando os seus deliciosos e purpurinos dedais. Ríamos, cantávamos, dançávamos e assobiávamos, sabe-se lá se devido à nossa natural jovialidade de crianças livres do controlo paterno, ou se drogados por força da guloseima que tanto apreciávamos pela madrugada naqueles montes e vales.

NOTA: E não foi sem alguns laivos de gozo, ironia e humor que, a preceito, fiz o vídeo cujo link anexo. Ora façam o favor de ver.

DEDALEIRA

 https://youtu.be/WDU4gRrzEaM

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.