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quinta, 15 julho 2021 09:55

COGITO, ERGO SUM

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COGITO, ERGO SUM

Eu, que cogito e invejo a homérica e indomável vontade de Marco Polo, medindo, à cancha, a rota da seda em busca do desconhecido oriente longínquo. Eu, que cogito e invejo a homérica coragem de Fernão Mendes Pinto, enfrentando as náuseas do mar salgado e a doçura e deslumbramento de coisas nunca vistas, nem ditas, lá longe, muito longe, em terras e gentes ignotas. Eu, que cogito e me delicio a navegar no mar da Odisseia junto de Ulisses e dos seus companheiros de regresso à ucha, depois daquelas aventuras vividas e cantadas por Homero, em tempo que lá vai. “Filho da Ucha, para ela pucha”, assim me dizia o meu pai.

odisseia - reduzidaEu, que, assim desejo e  quero, cogito e me lembro das batalhas em que particupei, das navegações que fiz, nos mares que atravessei e terras que conquistei. Eu, que cogito e vivo a Conferência de Berlim, assisti à partilha de África, a cada país europeu um naco seu, inchado de matéria-prima pronta explorar. Eu, ledor de literatura, poesia, histórias reais e ficcionadas, de faro e memória semelhante ao cão Argus, o único que reconheceu o dono depois de tão longa ausência. Eu, que vi passar séculos de vida, de turbulências, paz e amor, porque assim o desjo e quero, porque assim cogito e navego ainda no Mediterrâneo na companhia desse herói de tempo ido, aquele que não receou desafiar o Poseidon, aquele que ardilosamente cegou o filho Polifemo, o cíclope, o pastor ilhéu. Eu, cogito sobre todas estas coisass dos homens, dos deuses e do demo. 

UlissesE eu resuscitei Fenícios, Gregos e Cartagineses e faço-lhes companhia nas viagens de comércio e de confronto com os concorentes a navegarem no sentido este/oeste e vice-versa. Sim, ali, naquele “mare nostrum” dos romanos e seu império em redor,  habitado por gente diversa.

E, no mesmo mar que separa continentes e gentes, ainda se acoita atualmente Posídon, Polifemo e o Ulisses. E, passados tantos séculos, tanto ano, ele, esse heroi mítico troiano, teve por seguidores inúmeros Ulisses africanos que, oriundos das ricas terras repartidas em Berlim (foi e é mesmo assim), depois de caminhadas ciclópicas, enfrentanto perigos naturais e humanos sem conta, não resistiram ao canto das sereias europeias e romperam os nagalhos que os prendiam aos mastros da fome e da miséria, decididos a esgadanharem o sonho da vida, vão rumando por terra firme no sentido sul/norte  e nesse mar de outrora, de batalhas, de comércio e vida, agora, encontram a morte ou agonizam nas suas areias. 

Cogito, ergum sum.

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.