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domingo, 28 março 2021 12:33

CHARRUA DE AIVECA MÓVEL EM RESTAURO

Escrito por 

SEGUNDA FASE

Depois de muito trabalho, tanto  exercício físico como mental, o timão velho, apodrecido e partido pelo reumático sofrido da velha charrua, cá da casa, foi substituído por um novo, rijo como ferro, de castanho velho, obra tomada em mão por um velho artesão que não é, nem nunca foi, carpinteiro de profissão, apesar de se ter familiarizado com as ferramentas ligadas à carpintaria, à  agricultura, à pastorícia e à pecuária, desde que, em Cujó, então freguesia de São Joaninho, entrou no rol de ser gente.

1 - charrua

O mais difícil foi descalcinar porcas e parafusos. Sem uso, descoberta anos a fio no meu pátio, sujeita que foi às intempéries do tempo - vento, chuva, neve, frio e calor - e eu a olhá-la de perto diariamente, ficou na lástima que mostram as fotografias da crónica anterior e desta. E eu todos os dias a vê-la ali, sem ter onde recolhê-la, nem tempo para trata-la. Foi preciso o CONFINAMENTO, a PANDEMIA, para, enfim, lhe dar a atenção que merecia.

Nos vídeos do seu restauro que alojei no Youtube, disse que não iria precisar da Geometria Euclediana para lhe substituir o timão. E aludi à geringonça dianteira de tração, onde se atrela o cambão, classificando-a de elevador, um registo para pôr a relha e a aiveca a lavrarem mais fundo ou mais à superfície, conforme o desejo do lavrador e a natureza do solo arável.

2-charruaPois é. E será que em tal tarefa, aparentemente simples, não entra mesmo a GEOMETRIA, a MECÂNICA, a FISICA, e a MATEMÁTICA? O que pensaria disso o lavrador analfabeto nesse seu «SABER-FAZER» quotidiano, ignorando tais CIÊNCIAS?  

Pensem bem, ó caros leitores, e certifiquem-se como nestas coisas, simples e pesadas que e fazem calos nas mãos,, entram todas as CIÊNCIAS que incorporam os computadores e os leves telemóveis de bolso.

E face a isso tudo, bem gostaria que a juventude de hoje, muito treinada nos polegares a descer e a subir a tela dos seus Smarphones, esta nossa juventude mais qualificada de sempre, nos explicasse o funcionamento desse registo. Que operação era preciso fazer para lavrar mais fundo ou o contrário.

 

3-charuaIdentifiquei as peças principais que dão corpo a uma CHARRUA DE AIVECA MÓVEL, a saber: o cepo, o timão, a relha, a aiveca, a roda guia, a tal onde está acoplado o tal sobe-e-desce para o agricultor calibrar a lavra a seu gosto, naquele seu vai-e-vem atravessando o campo de cabo-a-rabo e a contribuir, sem saber, para o nascimento de uma escrita - BUSTROFÉDON - cujo nome ficou na história em homenagem a essa sua maneira de granjear a vida, na sua relação com os BOIS e a TERRA MÃE, ultimamente tão mal tratada. Isso, ainda no tempo do arado de pau radial ou do seu antecessor sem raios, já que a CHARUA era ainda ferramenta do porvir.

E neste nosso tempo de computadores, smartphones e família, não se pense que, esta rústica e utilitária ferramenta de lavrar a terra e fazer pão, foi um invento de somenos. Passear-se o lavrador num camo de estrema a extrema, a virar e a pôr ao sol as entranhas do solo arável e, na ida e na volta, fazer com que a leiva nova se dobrasse sobre a leiva anterior, deu muitas voltas nos neurónios ao inventor.

 4-charrua-4Sim. É verdade. Só passados muitos séculos, já o NEOLÍTICO, esse tempo em que o homem deixou de ser nómada para se tornar sedentário, se perdia no nevoeiro da memória e da ignorância, quando a CHARRUA DE AIVECA MÓVEL foi inventada. E, uma vez viva, gerada e parida no ventre de quem imagina, pensa e inventa, «em frente marche».

A partir de então, o lavrador passou a contar com uma peça agrícola de respeito. Atrela-lhe um animal, dois ou mais  (“tração a sangue” se dizia em Castro Verde, no Alentejo), esventra o solo ao comprimento e chegado fim da leira, solta a AIVECA, levanta a RABIÇA (ou rabiças, conforme o tipo de charrua) e faz com que essa peça móvel dê, por baixo, uma volta de 180 graus. Resultado? No retorno, a nova leiva dobra-se inteirinha sobre a leiva anterior. E assim, nesse vai-e-vem, nessa dança do “ora vira, ora torna a virar”, se faz uma vessada e se prepara o campo para produzir alguns alqueires de cereal ou toneladas dele.

6-charra-5Equipamento a laborar na Idade Média, nas terras do norte da Europa, no meu livro “Cujó, Uma Terra de Riba-Paiva”, deixei um quadro com os nomes das aldeias e dos proprietários que foram os primeiros possuidores dessa ILUSTRE FIGURA HISTÓRICA no concelho de Castro Daire. Soube isso, graças a uma rápida investigação oral que, por gosto e força dos ossos do ofício, realizei a propósito, consultando as bibliotecas andantes que se disponibilizaram a abrir as páginas da sua memória e do seu saber.

Repesquei-o para aqui, pois despropósito seria se o não fizesse, no momento em que procedi ao RESTAURO de uma peça histórica dessas.

Disse nesse meu livro (feito “pro bono”) editado pela Junta de Freguesia, sendo seu Presidente SECUNDINO DE CARVALHO, que a charrua, apesar de ser um invento medieval, demorou séculos a chegar a estas terras interiores, mas que, tomando assento nelas, tornada rainha das terras lavradias da serra, dispersas por vales, encostas e ravinas, se recusava a perder o trono, pois, no ano da edição do livro, em 1993, em Cujó, só havia 9 tratores e motoceifeiras. De resto, não faltavam arados de pau radiais e charruas de aiveca nos cantos de alpendres, quinteiros e quintãs da aldeia. Os proprietários das novidades mecânicas recém-chegadas, ficaram devidamente identificados nesse livro. Assim manda a HISTÓRIA.

quadroA chegada desses novos equipamentos e a entrada em decadência de uma atividade económica - a AGRICULTURA - que fazia da terra a principal fonte de riqueza e ocupação de mão-de-obra humana em tempos idos,  forçou a sua REFORMA ANTECIPADA, fazendo dela PEÇA DE MUSEU ou, então, desmembrada, desconjuntada,, as partes de madeira acabaram desfeitas em cinza, na lareira, e as de ferro numa qualquer FUNDIÇÃO NACIONAL OU ESTRANGEIRA, pescada que foi por desconhecido  negociante de FERRO VELHO.

Esta minha está, por enquanto, livre disso. Só falta tratar o ferro e a madeira com produto adequado. Para já, o rosto da AIVECA, que lavrou, anos seguidos, o quintal nas traseiras da moradia hoje minha, foi contemplado com o simulacro do MELRO que a substituiu nessa tarefa. Ele, cavador de bico amarelo, cava e esgravata a terra  à procura de minhocas. Tormou-se., a bem dizer, o seu dono e senhor. O seu diligente labor já foi registado em vídeo, mais do que uma vez.. É só pesquisar no Youtube escrevendo «Fareja o Melro»

DUPLA

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.