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domingo, 18 agosto 2013 12:40

DESIDERATA

Escrito por 

Creio ser de inteira justiça repor aqui, na integra, o texto que, em 1997, publiquei  no «Notícias de Castro Daire», referente ao bate-chapas, Victor Amando Monteiro dos Santos, vulgarmente conhecido por ZAPA, agora falecido e cujo óbito referi no meu «estado» do facebook, no dia 17 do corrente. Às vezes marginalizado, senão mimosedado com dichotes devido às suas excentricidades, é em memória dele que o faço e também para divulgação do fabuloso poema que ele recitou, servindo-se do martelo e do tais como instrumentos musicais a marcar ritmo do trabalho e da recitação. Assim:

  Bigorna-2«Neste meu costume de entabular conversa com os outros em busca de saber, independentemente do estatuto social, credos, raças ou ideologias políticas que cada um tenha, deparo, às vezes, com algumas surpresas. Desta vez foi o seguinte: estava eu na oficina a arranjar o carro, ali para os lados do antigo matadouro, em Castro Daire, quando o bate-chapas, facto macaco esburacado e sujo, martelo numa mão e encontrador (o tais) noutra, como que mostrando que sabia algo mais do que manejar as ferramentas do seu múnus, começou a desbobinar, de cor e salteado, uma cantilena, cujo texto, pelo seu significado, não posso deixar de trazer aos leitores do NCD:

“Caminha sereno e tranquilo no meio do ruído e da precipitação. Lembra-te da paz que podes encontrar no silêncio, sempre que possível, e sem abdicares de ti próprio. Sê bom amigo de todos. Proclama a tua verdade calma e claramente. Escuta o que dizem os outros, mesmo os estúpidos e ignorantes. Não vexames a sua inteligência. Se te comparares aos outros podes tornar-te vaidoso e despeitado, pois sempre haverá quem seja melhor e pior que tu. Interessa-te pela tua profissão, por mais humilde que ela seja. Ela é um bem autêntico que não te fugirá nos incertos acasos do tempo. Tem cuidado nos teus negócios, porque o mundo é cheio de enganos, mas que isto não te aflija ao ponto de te não deixar ver onde a virtude reside. Muitos homens lutam por elevados ideais e a vida em toda a parte está cheia de heroísmos. Sê tu próprio. Sê autêntico e principalmente não sejas pedante, nem afectado, nem uses cinismo no que respeita ao amor, porque, perante tudo o que é árido, desencantamento e desilusão, ele é perene como a erva brava. Aceita de boamente o conselho dos anos, abandonando as coisas da juventude e não te aflijas com os receios que só existem na tua imaginação. Muitos temores nascem da fadiga e da solidão. A disciplina só te pode ser salutar. Não sejas severo para contigo. Tu és filho do universo, tal qual como as árvores e as estrelas. E possas ou não entendê-lo, não há dúvida que o universo é aquilo que deve ser. Portanto vive em paz com Deus, seja qual for a forma como tu o imaginas. Quaisquer que sejam os teus trabalhos e aspirações preserva a tua alma nesta turbulenta confusão da vida. O mundo, com todo o seu fingimento, fadigas e sonhos desfeitos,  é ainda um belo mundo. Procura ser feliz.”.

Sem saber atribuir a autoria do texto a Pedro ou Paulo, disse ter lido o «Desiderata», no “Jornal do Exército” em 1969, no quartel de Viseu, jornal que, há falta de papel higiénico, estava disponível junto da sanita. Gostou dele e, antes de dar ao jornal serventia que se impunha no momento, meteu o texto na cachimónia, onde ficou arquivado a par de tantos outros escritos em prosa e poesia que leu, enquanto estudante na Escola Industrial e Comercial de Viseu. E desse arquivo dá ele provas nos cafés, nos passeios, na praça pública e no seu local de trabalho, desde que o desafiem. Basta que esteja em dia sim. Quando isso acontece, Victor Amando Monteiro dos Santos debita para todos os presentes a biblioteca que há anos transporta consigo diariamente entre os ombros. Ele é uma figura castiça de Castro Daire. Muitos o conhecem por Zapa, o poeta. Por isso e por outras extravagâncias que preencheram o filme da sua vida.

 Bate-chapas de profissão, habituado a endireitar chapa amolgada e ferros retorcidos é muito possível que o texto lhe tenha saído distorcido. Seja, porém, como for, ele aqui fica, tal qual foi dito. Para além dos ensinamentos que comporta, ele atesta a memória de elefante que o preserva. Ouvido por um docente, e sabido que os estudantes de hoje não fazem o mínimo esforço para exercitar essa capacidade humana, ao ponto de esquecerem hoje o que aprenderam ontem, bem pode pôr-se em dúvida o desiderato de virem a compreender que a disciplina lhes é salutar. A memória está hoje nas máquinas de calcular, nos computadores, RAMs e ROMs porquê outros esforços? Certo, só que sem esforço e disciplina mental, estes filhos do universo, tal qual como as árvores e as estrelas, jamais compreenderão o mundo. Que ser iguais a si próprios e viver em paz com Deus, seja qual for a forma como o imaginem, passa pela aquisição de saberes que não dispensam a memória. Filhos do tempo e do sistema, face à realidade presente, resta formular o desejo de que todos jovens de hoje, esses homens de amanhã sejam felizes, nesta turbulenta confusão da vida».

Abílio/1997

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.