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segunda, 17 junho 2013 09:27

TRADIÇÕES POPULARES (2)

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TRADIÇÕES POPULARES (2)

 

Em 1988, publiquei no jornal «Lamego Hoje» o texto que se segue, ilustrado com a foto do senhor José da Fonseca Costa que se prontificou a colaborar e a mostrar de dia, o que, tradicionalmente, se fazia de noite. Assim, tal qual:

«Os habitantes de S.Joaninho, freguesia do concelho de Castro Daire, sabem bem que, na noite de quarta-feira da semana das comadres, não podem, repousar cedo, como de costume. A tradição manda que, nessa noite, os mancebos, que têm de ir à inspecção militar, não se esqueçam de proceder à «partilha do burro»..A coberto da asa negra da noite (a tradição remonta a épocas em que se sonhava com a iluminação pública) descobre-se um burro em qualquer cortelho e conduz-se ao centro da povoação, lugar onde se encontra o «calhau do burro». Aí, uma grande chapa de zinco, conseguida a propósito, ligada por arames a outras latas menores, presas por sua vez à arreata do animal, vão ser os principais instrumentos da festa, barulho e  desassossego.

 

Tudo s postos os rapazes combinam entre si qual deles deve «ler» as «deixas» e quais os que devem «roncar» como o asno, o qual, na sua qualidade de pensador militante, não entende nada do que se passa, nem vislumbra as razões que o levaram a sair da loja, de ao pé da manjedoura. Aproxima-se a meia-noite.

A algazarra começa. As pancadas nas latas ecoam pela povoação e rasgam o pano-bréu que a cobre e aos montes vizinhos.

- Volta p'raqui burro!

- Aí, oh!

- Eh burro, que és burro, chó!

- Him...hooom...hiom...hioom!

S.Joaninho-RedA arruada começa. Primeiro, uma parte da povoação e depois outra. Na parte norte, o burro sacia a sede na fonte do seu nome a «fonte do burro». O barulho das latas a arrastar pelo chão áspero e irregular da calçada à portuguesa lembra ao habitante mais descuidado que a tradição está viva e deixa surpresos e espantados, quebrado que foi o seu sossego, os animais noctívagos. Se os lobos rondam por perto, em busca de rês perdida ou rafeiro descuidado, logo se põem ao largo, gravado que têm na memória o batuque característico de antigas montarias e transmitido por anteriores gerações lupinas.

Regressados ao ponto de partida, a vozearia do grupo, em simultâneo com o tantan...tantan... das latas, indicam  que está prestes a «partilha».

Antes, porém, tomam-se algumas precauções. Alguns rapazes, armados de varapaus ou enxadas, tomam posição em redor do «calhau do burro», não vá algum morador, descontente com a «deixa» do ano anterior atribuída à parente ou amiga, fazer das suas e escapulir-se no escuro.

Em cima do calhau o testamenteiro está pronto a desfiar a meada. Através do funil colocado na boca, à laia de corneta, passam os «podres»  das raparigas do lugar, cabendo a cada uma a parte do burro que, por consenso dos rapazes presentes lhe foi atribuída, correspondente ao defeito ou comportamento mais marcante da sua personalidade.

 Assim:

«Deixo e torno a deixar, pedaços de burro até ele acabar. Para a menina (tal)...por ela ser espevitada, deixo os sapatos do burro, p'ra fazer barulho na calçada. Deixo e torno a deixar, pedaços do burro até ele acabar. Para a Maria (tal), por ser muito friorenta, deixo o mangalho do burro, p'ra ver se ela esquenta. Deixo e torno a deixar, pedaços do burro até ele acabar. E à menina (tal) por ser muito tosca, deixo o rabo do burro, p'ra ela sa udir a mosca»

.O testamento é longo. De quando em quando, a leitura é interrompida para dar lugar à algazarra, ao rugir ensurdecedor das latas e aos «zurros» do animal, imitação a cargo dos intervenientes escolhidos, que reage aos golpes do machado esquartejador.


«Deixo e torno a deixar, pedaços de burro até ele acabar. Para a Maria (tal) por ter a mania que é fina, deixo a pele do burro, p'ra uma gabardina. E à Maria (tal) Por ser curcumbada, deixo a espinha do burro, p'ra ficar desempenada. Para a menina (tal) por ser espertalhona, deixo os «guizos» do burro, p'ra ela coçar a mona».

 

Diferentemente das «mandas» de Cujó e de outras provações vizinhas, nomeadamente as Monteiras, hoje extintas, e que não revestiam a forma da «partilha do burro», a tradição de S. Joaninho, encontra paralelo noutras terras beirãs, diferindo nalguns aspectos de não menor importância do ponto de vista sociológico.
Aqui a partilha faz-se de noite e só os rapazes é que têm vozes. Só eles podem ter a liberdade e o desplante, a coberto da noite, de apontar o dedo às raparigas. Elas não tugem, nem mugem. O mesmo não acontece, porém, em Lazarim, concelho de Lamego.

LAZARIM

 

Aqui, a par dos mascarados, com máscaras de madeira e do folclore que dá cor e vida ao acontecimento, concertina, bombos e tambores, as raparigas, em plena luz do dia, lado a lado com os rapazes (os compadres e as comadres)  podem dizer das suas e enfrentar o «macho» com as suas «deixas» subtis, irónicas e eróticas.

Neste ano da graça de 1988, terça-feira de Carnaval, dia 16 de Fevereiro, fiz parte da mó anónima de gente que presenciou o espectáculo. Trânsito interrompido. Alguns fotógrafos. Curiosos muitos. Cenas filmadas. Alguns jornalistas? Alguns estudiosos? Talvez. O assunto merece ser tratado em trabalho próprio, mas para já aqui deixo a referência ao facto de, no riso, homens e mulheres se encontrarem no mesmo plano, desta vez com sinal mais para as raparigas que souberam trabalhar o texto (o testamento) com mais vigor, mais subtileza, mais ironia, mais graça.

Enfim, sem grande rigor métrico, as quadras tinham sentido e carga erótica bastante para mostrarem que esse ingrediente, tipicamente humano, resistiu à castração feita por certos capadores culturais que nesse tipo de tradição, nesse tipo de julgamento, para além de entretenimento, nunca viram a pedagogia utilizada pela comunidade para corrigir vícios e/ ou comportamentos individuais.

Ditas em voz alta e, plena luz do dia (ao contrário de S. Joaninho) e com o rosto bem descoberto, a cena contrasta com os mascarados que cirandam em volta. Serão máscaras de Carnaval? Ou antes a herança de «lazarentos» obrigados a esconder os rostos chagados? Aqui tudo lembra um lazareto. As casas antigas apresentam paredes que não viram régua, esquadro ou prumo. Rugosas e irregulares, são rostos humanos cobertos de pústulas à espera de tratamento adequado. A defesa e preservação do património histórico-cultural passa também por aí, e as tradições populares, como manifestações culturais que são, a permanecerem vivas e dinâmicas, merecem que o quadro físico onde se desenrolam as acompanhe na sua vitalidade não dando ao contrário, mostras de abandono, desolação e morte.

Cf. Abílio Pereira de Carvalho,  «Lamego Hoje», ano de 1988

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.