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domingo, 26 janeiro 2014 13:07

CUJÓ - «ENTRADA AOS SERÕES»: UMA PRAXE

Escrito por 

«Regozija-te pois, ó mancebo, na tua mocidade, e viva em alegria a teu coração na flor dos teus anos, e anda conforme as caminhos do teu coração e segundo os desejos em que põem a mira as teus olhos; mas sabe que Deus te fará ir a Juízo para dar conta de todas estas coisas». (Eclesiastes, XI, 9.) 

1 - NO PASSADO

SegadoresTodos aqueles que no estudo das leis, (desde o Código de Hamurabi aos tratados do século XX, passando pelo Jus Civile de Justiniano) queimaram pestanas para do direito fazerem o seu modo de vida, por certo se admirarão que, em Cujó, pequena aldeia neste interior desconhecido, não haja iletrado que não tenha sido juiz ou advogado e habitação, negra de fumo e coberta de colmo, que não tenha sido DOMVS IVSTITIAE

A «entrada aos serões», praxe que todos os anos se realizava na povoação, dava ocasião, não se sabe desde quando, a que, pelo menos uma vez na vida, aldeão analfabeto (ou de rudimentares letras) tivesse deixado o seu obscuro papel de cavador ou artífice para assumir, pelo espaço de uma audiência, o de iluminado bacharel em leis. Em consequência, e também uma vez na vida, ao botar sentença, tenha sido o fiel da balança e não peso colocado num dos seus pratos.
Cerimónia antiga, de cujas origens, no dizer dos idosos, «não há memória», tem  por finalidade, real ou aparente, julgar os actos praticados por todos os mancebos naturais da terra quando atingiam os 19 anos de idade e, simultaneamente conferir-lhes as «ordens» sem as quais e antes dessa idade, lhes não é permitido frequentarem os serões ou permanecerem nos caminhos e becos da aldeia, depois do lusco-fusco do fim do dia. 
Revestindo sempre, ao que parece, a forma de tribunal, era uma praxe reservada exclusivamente, à participação dos rapazes solteiros, cuja audiência secreta, para os idosos «já não e o que era». Hoje, «é só uma brincadeira». 

Estando os seus intervenientes directos enquadrados entre os 19 e mais ou menos os 30 anos, salvo os celibatários que, a manterem-se nesse estado civil, lhes cabe, ao mais velho, desempenhar as funções de juiz, pode dizer-se que «magis¬trados» e «réus» não têm muita idade e experiência de vida a separá-los. 
Tradicionalmente realizava-se na noite que precedia a grande feira do Fojo (lº domingo de Setembro de cada ano), mas o grande surto migratório da década de sessenta, ao afastar do meio a maior parte dos intervenientes directos, impôs-lhes outra data de realização: a noite que precede o 2º domingo de Agosto, precisamente por nesse domingo que tem lugar a romaria do Senhor da Livração e a ela virem, de longes terras, os que por lá governam vida. 
A «entrada aos serões», dita, em tempos idos,  «coisa séria» marcou, naturalmente, através dos tempos, as atitudes da juventude. Os rapazes, a par da alegria sentida por verem aproximar-se a data da sua emancipação para a vida nocturna, a par do prazer antecipado de poderem saborear a companhia feminina das serandeiras durante a escarpeada da lã, a maçada do linho, a desfolhada, os bailes e cantorias que aqueciam as noites cheias de magia e sorti1égio, a par disso, dizia, o medo, a ansiedade, a inibição eram outros ingredientes que, nas vésperas e na noite do grande júri, condicionavam o comportamento desses rapazes. 

A tradição e o cenário não eram para menos. 

Os «magistrados» senhores do seu papel, muniam-se dos adereços tidos por convenientes e necessários a uma cerimónia mista de autoridade, ambiguidade e humor. O juiz, despida a roupeta de burel, substituída por outra mais luzente, óculos de míope, bigode retorcido e louro feito de barba de milho, apresentava¬-se na audiência com a postura e a idade de um geronte, disposto a não envergonhar, pela aparência, o titular do cargo nos tribunais autênticos.
Os «advogados», sabendo que os seus argumentos, réplicas e tréplicas (apesar de desconhecerem esta terminologia e conceitos) podiam influenciar a sentença do Juiz, e querendo fazer jus ao ditado «um burro carregado de livros e um doutor» punham à prova toda a sua imaginação para, naqueles tempos «descolarizados», encontrarem um calhamaço, um missal, um alfarrábio e, à falta deles, a feitura, com entusiasmo, de um bloco de papel de embrulho, volumoso e sebento, pois, um livro assim, tão vazio de letras como os utentes, no momento de contraditar o opositor, ou mesmo discordar da sentença do Juiz, prestava-se a impressionar a assistência: atirava-se ao chão, espezinhava-se, rasgava-se e, com gestos e palavras, dizia-se que «as leis nada valiam» na opinião de um só homem. 
As «testemunhas» eram todos os mancebos que no ano anterior haviam passado pela praxe. A elas cabiam trazer à audiência as coisas mais gravosas que os «réus» eventualmente tivessem cometido no quotidiano da vida. E era ponto assente que ao tribunal vinham parar os desvios reais e/ou aparentes, feitos às regras do bom entendimento comunitário. Condenava-se a abertura indevida de uma poça de limar, sem se olhar ao ramo verde que, sobre o boeiro (dito bacanheiro) marcava a posse de outrem; condenava-se uma parede deitada abaixo por maldade; os gados nas hortas e searas alheias, um molho de lenha cortada em coutada, etc. etc. 

Mas a fraqueza humana que à acusação dava gozo escalpelizar era, sem duvida, o relacionamento e comportamento dos rapazes e das raparigas, tidos por montes e vales, pastoreando rebanhos, carregando lenha ou fenos, ceifas, malhadas, recolha aos celeiros e palheiros, ambiente e actividades sempre propícias a converterem um gesto, uma demora prolongada, em matéria crime passível de julgamento e condenação. 
Todo o jovem rambóia que seguisse os desejos do coração (segundo o versículo bíblico) o e não se contentasse com encher a menina dos olhos com o que via, e optasse antes por encher a lesta a mão, com aquilo que fal¬ta às amazonas, tinha, por certo, pesada sentença. 
Para cada «réu», e segundo as maroteiras trazidas a juízo, uma sentença. Trazidos a Tribunal pelo oficial de diligências os jovens eram julgados um a um.
Metidos em compartimentos separados, não havia contacto entre os sentenciados e os outros. Só no fim da audiência eram trazidos de novo à sala para tomarem conhecimento da pena que a cada um coube em sorte. 
Lidas as sentenças, o juiz, tendo por base a matéria produzida nos autos, usando das suas capacidades oratórias, fazia um discurso tão moralizante e edificante, quanto os recursos e os dotes de que dispunha. 

Depois vinha o convívio. Desfeito o tribunal, as penas convertidas em salpicões, quartilhos ou ancoretas de vinho, cigarros e bacalhau permitiam a uma dezena de estômagos a desforra do jejum anual. Cabra
igeridas as sentenças, a arruada saía povo fora e, ao ritmo do bombo, ferrinhos e rabeca, as vozes alternadas dos mancebos mais dotados para o canto de improviso lembravam ao vizinho mais idoso e descuidado que decorria a noite da «entrada aos serões». As raparigas, aconchegadas aos lençóis de linho, sabiam que, daí em diante, quando se sentassem ao redor do monte de lã, em noite de escarpeada, podiam estender as suas saias e, com esse gesto, reservar, junto delas, lugar para o seu namorado, acabadinho de «receber ordens». 

2 – NO PRESENTE

Apesar das mudanças que se verificaram no contexto sócio-económico e cultural, com a emergência de novos cenários, a estrada a romper o isolamento, a luz eléctrica a tornar a noite mais transparente e menos amante, a televisão, o fim dos serões, causa aparentemente primeira da sua razão de ser, a praxe continua e parece manter a sua essência. 
Como resultado da emigração a maior parte dos intervenientes directos trazem para a audiência, como expressão do seu desenraizamento, a toponímia e as mazelas sociais doutros meios, nunca dantes falados na aldeia. Muitos deles desconhecedores da toponímia local, dos trabalhos do campo e das regras porque se regem os utentes dos baldios, das águas, dos caminhos e regos colectivos, as acusações incidem sobre os crimes urbanos e suburbanos divulgados pelos media do país e do estrangeiro. Apesar de tudo, algo, porém, persiste em estabelecer, sem ruptura, a ponte entre o passado e o presente: as relações sexuais. 

Natural da terra, 26 anos depois de ter escapado ao julgamento, acicatado por Clio, fui assistir a uma audiência. A praxe deixou de ser rigorosamente destinada a solteiros, e, casados já que, ultimamente, estes também têm assumido a função de juízes. Aos intervenientes, outrora analfabetos, sucedem-se gerações escolarizadas, sem que, contudo, do ponto de vista da oratória e da retórica, a audiência tenha sofrido alterações significativas. Mas ontem, como hoje, são as relações sexuais que estão no cume das acusações proferidas. Nos meus apontamentos, as relacionadas com o sexo atingiram a percentagem de 57,5% contra 21 % referentes a roubo, 9,5% ao uso e tráfego de droga, 9% relativos a prejuízos agrícolas e 3% a assassinato. 
Está-se no domínio da ficção. Mas mesmo que despachadas com esse rótulo, as acusações relativas as práticas sexuais, pela sua diversificação e carácter humanamente aberrativo, justificam cabalmente a essência secreta do julgamento. Sob a asa opaca da noite, resguardados dos grilhões sociais, da vigilância paterna, um punhado de jovens, ciosos da sua emancipação, desconhecendo talvez as motivações profundas que os levam a reunir-se, soltam os fantasmas que lhes povoam a mente e, sem complexos, traumas e pânico, fazem emergir Pã, Centauro, Minotauro e outro híbridos mitológicos que deixariam de o ser se nós, ainda que por momentos, conferíssemos às acusações um cibo de realidade com efeitos genéticos. 

Porque tudo merece estudo e as coisa mais banais podem ajudar a compreender a Humanidade, aqui deixo o registo como aperitivo para os estudiosos das Ciências do Homem. 
Audiência secreta, feita a coberto da noite, julgamento de rapazes por rapazes, a «entrada aos serões», em Cujó (não se conhece tradição semelhante nas redondezas), encontra paralelo nas «mandas», instituição congénere destinada ao julgamento das raparigas, por alturas do Carnaval. Com efeito, no Domingo Gordo, à saída da missa, em pleno céu aberto e a luz do Sol, os rapazes «ajuizavam» as maroteiras das raparigas, sob a forma testamentária. 
Assumindo designação diversa, «as mandas», quais tribunais de opinião pública, não se diluíram ainda totalmente na fita do tempo. Elas persistem em algumas povoações do concelho, seja a «Partilha do Burro», em S. Joaninho, seja a «Leitura dos Cabaços» noutras aldeias.

cf. Abílio Pedreira de Carvalho «Notícias de Viseu», de 25-04-1986 e  «Cujó-Uma Terra de Riba-Paiva», ed. 1995, pp. 204-208

 

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Abílio Pereira de Carvalho

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na freguesia de S. Joaninho (povoação de Cujó que se tornou freguesia independente em 1949), concelho de Castro Daire, distrito de Viseu. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Ler mais.